Cortesia
de wikipedia e jdact
Terreille
«(…)
Já faz alguns dias que venho ouvindo um tipo estranho
de trovão, um chamado distante. Ontem à noite, rendi-me à loucura para poder
recuperar a minha Arte de Viúva Negra, uma feiticeira das assembleias da Ampulheta.
Ontem à noite, teci uma teia emaranhada para ver os sonhos e visões. Hoje, os
destinos não serão revelados. Só tenho forças para dizer isto uma única vez.
Mas, antes de falar, preciso ter a certeza de que aqueles que precisam ouvir
estão na sala. Aguardo. Não reparam. Os copos se enchem e voltam a se encher
enquanto luto para me manter nos limites do Reino Distorcido. Ah, ali está ele.
Daemon Sadi, do Território denominado Hayll. É lindo, frio, cruel. Tem um
sorriso sedutor e um corpo que as mulheres desejam tocar e pelo qual desejam
ser acariciadas, mas é dominado por uma raiva fria e insaciável. Quando falam
sobre o seu desempenho no quarto, as palavras que as Senhoras murmuram são prazer
excruciante. Não duvido que seja sádico o suficiente para misturar dor e prazer
em partes iguais, mas foi sempre gentil comigo, e esta noite envio-lhe um
pequeno raio de esperança. Mais do que qualquer um jamais ofereceu a ele.
Os Senhores e Senhoras estão inquietos. Não costumo demorar
tanto para começar a falar. A agitação e o aborrecimento estão instalados, mas
eu aguardo. Depois desta noite, não
fará qualquer diferença. Ali está o outro, no canto oposto da sala. Lucivar
Yaslana, o mestiço eyrieno do Território denominado Askavi. Hayll não tem
qualquer afecto por Askavi, nem Askavi por Hayll, mas Daemon e Lucivar são
atraídos um pelo outro sem compreenderem o motivo, tão enredadas estão as suas
vidas que não se podem separar. Amigos inquietos, combateram batalhas lendárias
e destruíram tantas cortes que os Sangue ficam receosos quando estão juntos,
não importa por quanto tempo.
Levanto as mãos e deixo-as cair no colo. Daemon observa-me.
Não mudou nada, mas sei que aguarda e ouve. E, uma vez que ele ouve, Lucivar
também ouve. Ela está chegando. A princípio, não percebem que falei. Quando
entendem as palavras, começam os sussurros irritados. Vagabunda estúpida, grita
alguém. Diga-me quem irei amar esta noite. O que importa?, respondo. Ela está
chegando. O Reino de Terreille será dilacerado pela sua própria e estúpida
ganância. Os que sobreviverem irão tornar-se servos, mas serão poucos. Estou afastando-me
dos limites. Pelo meu rosto escorrem lágrimas de frustração. Ainda não, doces
Trevas, ainda não. Tenho que dizer isso.
Daemon ajoelha-se a meu lado, as suas mãos sobre as minhas. Dirijo-me a
ele, somente a ele, e, através dele, a Lucivar. Os Sangue de Terreille
corrompem as antigas tradições, zombam de tudo o que somos. Com um gesto,
indico aqueles actualmente no poder. Distorcem os factos como lhes convém.
Vestem-se de maneira elegante e fingem. Enfeitam-se com Jóias dos Sangue, mas
não compreendem o que significa ser Sangue. Dizem que honram as Trevas, mas não
é verdade. Não honram nada, a não ser as próprias ambições. Os Sangue foram
criados para servir como protectores dos Reinos. Por isso recebemos o nosso
poder. Por isso descendemos dos povos de todos os Territórios, ainda que deles
estejamos separados. A corrupção da nossa essência não pode continuar. Chegará
o dia em que a dívida será cobrada e os Sangue terão de responder por aquilo
que se tornaram.
São estes Sangue que reinam, Tersa, diz Daemon com
tristeza. Quem resta para cobrar a dívida? Escravos bastardos como eu? Estou-me
afastando rapidamente. As minhas unhas cravam-se nas mãos de Daemon até tirar
sangue, mas ele não me repele. Baixo a voz. Ele se esforça para me ouvir. Há
muito, muito tempo as Trevas têm um Príncipe. Agora, a Rainha está a caminho.
Pode levar décadas, até séculos, mas está a caminho. Com o queixo, aponto os
Senhores e Senhoras sentados às mesas. Quando isso acontecer, eles já serão pó,
mas você e o eyrieno estarão aqui para servir. Seus olhos dourados enchem-se de
frustração. Que Rainha? Quem está a caminho? O mito vivo, murmuro. Os sonhos
tornados realidade. O choque é substituído por um desejo intenso. Tem certeza? A
sala é um turbilhão de névoa. Só Daemon continua nítido a meus olhos. Mas ele é
a única coisa de que preciso. Eu a vi na teia emaranhada, Daemon. Eu a vi.
Estou cansada demais para me manter no mundo real, mas,
obstinadamente, continuo agarrando as suas mãos para uma última revelação: o
eyrieno, Daemon. Ele olha de relance para Lucivar. O que é que tem? É seu
irmão. Vocês são filhos do mesmo pai. Não conseguindo mais aguentar, mergulho
na loucura apelidada de Reino Distorcido. Vou caindo por entre os fragmentos de
mim mesma. O mundo rodopia e se desfaz em estilhaços. Nos seus fragmentos,
vislumbro aquelas que foram minhas Irmãs precipitando-se das mesas,
aterrorizadas e decididas, e a mão de
Daemon estendida, casualmente, destruindo o frágil fio de seda de aranha de
minha teia emaranhada.
Não é possível reconstruir uma teia emaranhada. As Viúvas Negras
de Terreille podem passar anos assustadores tentando, mas será em vão. A teia
não será a mesma e não conseguirão ver o que vi.
No mundo cinza, lá em cima, posso ouvir-me uivando, numa gargalhada. Muito abaixo de mim, no abismo psíquico
que faz parte das Trevas, ouço um outro uivo, repleto de alegria e de dor, de
raiva e de celebração. Não
é mais uma feiticeira que está a caminho, minhas tolas Irmãs, é a Feiticeira». In Anne Bishop, A
Filha do Sangue, Jóias Negras, 1998, Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-972-883-977-2.
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