Guimarães e Coimbra, Agosto de 1144
«(…) Pêro Pais executou uma pequena
vénia, agradecendo os elogios. Depois, apanhou um cesto do chão. Para onde vos sigo,
bela Ília? As suas palavras lisonjeadoras provocaram um efeito imediato. Já fascinada,
Ília corou e murmurou: sois muito gentil... Quereis acompanhar-me? Sorridente, Pêro
Pais declarou-se honrado por auxiliar uma moça tão encantadora e avançou atrás dela,
enquanto Gualdim Pais permanecia especado na praça, perto das outras irmãs,
também elas surpreendidas pela folga inesperada de Ília. Terão ido ao rio?, questionou-se
Ália. Os três decidiram procurar os enamorados e, perto da margem do Mondego, verificaram
que o charme intenso de Pêro provocara estragos, pois viram uma manta estendida
no chão, em cima da qual dois corpos se mexiam. Olha o malandro..., comentou Élia.
Está a filhá-la! Com uma ponta de inveja, Ália declarou que a mana era uma sortuda.
Abanando-se para sacudir os calores, rebolou os olhos na direcção de Gualdim Pais
e lamentou-se: que pena serdes tão religloso...
Calados, os três esperaram pelo fim
da refrega entre Pêro e Ília. Só depois regressaram todos a casa. Minha mãe já partiu?,
questionou-se Pêro Pais, ao ver que a carroça de Mem desaparecera. Mas nós
ainda cá estamos..., adiantou Ália. Encostando-se a ela, Élia riu-se e acrescentou:
e só a Ília foi comida! Entusiasmado, Pêro Pais decidiu entrar, pois não ia deixar
duas belas raparigas por saciar. A mãe decerto estaria segura na companhia de
Mem. Em todas as frentes e em todas as costas!, declarou ele a Gualdim Pais, que
não o seguiu e permaneceu na rua, já que não era dado àquelas brincadeiras.
Soure, Setembro de 1144
O Sol desaparecia por detrás das
elevações a oeste, quando Mem e Chamoa se apresentaram às portas de Soure. A fortificação
estava quase abandonada e um único soldado esclareceu-os. A guarnição da Ordem
do Templo andava mais a sul, perseguindo um atrevido bando de mouros, que pilhara
várias aldeias da região. Mestre Jean Raymond ordenara uma retaliação, forte e até
o pároco Martinho tinha ido, bem como os dois templários que Mem conhecia, o Rato
e o Peida Gorda pertencentes ao grupo inicial, que se instalara na povoação há
quase 20 anos. Onde fica o túmulo de Ramiro?, perguntou Mem. O soldado empalideceu
com a referência ao morto-vivo, que se dizia caminhar pela estrada em dias de
lua cheia. Quereis lá ir? É um local assombrado.
Chamoa torceu-se, num arrepio de medo.
Mas a curiosidade venceu o receio e ela e Mem decidiram prosseguir até ao local,
onde um monte de pedras soltas à beira da estrada assinalava o que fora o túmulo
do antigo templário. O almocreve atrelou os jumentos e, vendo que a amiga se benzia,
assustada, garantiu-lhe que a lenda do morto-vivo não passava de uma historieta para assustar os
fracos de espírito. O mais certo era o cadáver ter sido levado pelos animais. Nunca
se sabe, murmurou Chamoa. Apavorada, admirou o estranho lugar de repouso final
de um traidor, mas também do seu primeiro enamorado. Conhecera Ramiro na feira
de Ponte de Lima, tinha quinze anos e ele dezasseis. Haviam trocado mimos.
Depois, ela fora obrigada a casar com o pai dele, Paio Soares, e Ramiro fizera-se
templário para resistir ao desgosto. Era um homem mau, recordou Mem. Odiava mulheres.
Chamoa suspirou e disse: a culpa foi
minha. Nunca esqueceu os meus beijos. O almocreve contestou-a: não fora ela quem
forjara o carácter do templário, que abominara as princesas mouras, Zaida e Fátima,
e se juntara à malfadada Raimunda, tal era o asco que ambos tinham a Afonso
Henriques.
Mal amados, cães
danados..,
Achais possível que Ramiro não tenha
morrido? perguntou ela. Mem ouvira histórias de pessoas que pareciam mortas e depois
acordavam, mas Ramiro fora cortado dezenas de vezes, na cara, no estômago, no peito
e na garganta. Trinta golpes do Rato. Só por milagre... Mem concedeu que, se Ramiro
tivesse sobrevivido, fora certamente ajudado, talvez por um curandeiro que deambulasse
naquela estrada. Virgem Santíssima, virá matar-me, murmurou ela. Para a distrair
de pensamentos tão sombrios, o almocreve incentivou-a a procurar Martinho Soure.
Contudo, ela manteve-se junto às pedras tumulares, esmagada pela recordação
macabra de ter dormido com um morto-vivo. Não me perdoo, dei-me a um uranista. Anos
antes e para ajudar Afonso Henriques, dormira com Ramiro. Tentara virar-lhe os
gostos e deixara-se ser filhada por um sodomita.
Menina oferecida, sempre arrependida…
Mem suspirou, com pena dela.
Chamoa guiara-se por uma lealdade extrema a Afonso Henriques. Mas, após alguns anos
felizes como mulher dele, acabara desprezada. No presente, restavam-lhe dois caminhos:
ou se torturava em comiseração, ou desvendava um mistério antigo, que a reabilitasse
aos olhos do rei de Portugal. Vamos, insistiu Mem». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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