O
Príncipe Estrangeiro
«(…) Uma cidade se ergueu contra o sultão, clamando à noite pelo
nome do príncipe rebelde, mas acordou com os olhos vazios dos mortos. E a
Bandida de Olhos Azuis foi atingida por uma bala numa batalha nas montanhas,
ficando gravemente ferida. Ali, pela primeira vez desde que os seus caminhos se
cruzaram, a Bandida de Olhos Azuis e o príncipe estrangeiro separaram-se. Enquanto
ela lutava pela vida, ele foi enviado para a fronteira ocidental do deserto,
onde um exército de Xicha estava acampado. O príncipe estrangeiro roubou um
uniforme e entrou no acampamento xichan como se fosse um deles. Foi fácil
permanecer ali, onde nem parecia estrangeiro. O príncipe estrangeiro ficou ao
lado deles enquanto lutavam contra as forças do sultão, espiando em segredo
para o irmão. E por um tempo tudo correu bem para ele, escondido em meio ao
exército xichan.
Até que um mensageiro usando o branco e dourado do sultão e
carregando uma bandeira de paz trouxe uma carta. O príncipe estrangeiro teria
matado para saber o que dizia e poder contar tudo aos seus aliados, mas não foi
preciso. Todos sabiam que ele falava a língua do deserto, por isso foi
convocado à tenda do general xichan para ser intérprete da conversa com o
mensageiro do sultão, nenhum deles ciente de que se tratava de um inimigo. Na
mensagem, o sultão pedia um cessar-fogo. Ele dizia estar cansado do
derramamento de sangue e se mostrava pronto para negociar. O príncipe
estrangeiro descobriu que o sultão estava convocando todos os governantes
estrangeiros para tratar de uma nova aliança, qualquer rei, imperador ou
príncipe interessado no seu deserto poderia ir até ao palácio apresentar os seus
argumentos.
A carta foi enviada ao imperador xichan na manhã seguinte.
O combate cessou. Em seguida, viriam as negociações. Então a paz. Sem a
necessidade de proteger as suas fronteiras, os olhos do sultão se voltariam
para o seu território novamente. O príncipe estrangeiro entendeu que havia
chegado a hora de voltar para o lado do seu irmão. A rebelião estava prestes a
se transformar numa guerra.
Eu
gostava daquela camisa. Era uma pena que estivesse encharcada de sangue. A maior parte do sangue não era minha, pelo menos. Tampouco
era a camisa, que eu havia pedido emprestada de Shazad e nunca me dera ao
trabalho de devolver. Agora ela dificilmente ia querê-la de volta. Pare! Obedeci
de imediato. Minhas mãos estavam atadas, e a corda arranhava a pele em carne
viva dos meus punhos. Xinguei baixinho enquanto inclinava a cabeça para trás, enfim
desviando o olhar das botas empoeiradas para encarar o brilho do sol do
deserto. As muralhas de Saramotai produziam uma sombra longa e imponente com a
última luz do dia.
Esses muros eram lendários. Haviam permanecido indiferentes
a uma das maiores batalhas da primeira guerra, entre o herói Attallah e a
Destruidora de Mundos. Eram tão antigos que pareciam ter sido erguidos com os
ossos do próprio deserto. Mas as palavras pintadas de forma descuidada em tinta
branca sobre os portões eram novas. Bem-vindos
à Cidade Livre.
Dava para ver que a tinta escorrera entre as rachaduras das pedras
antigas antes de secar
com o calor. Eu tinha algumas
coisas a dizer sobre ser arrastada à força, amarrada
como uma cabra num espêto, para um lugar chamado de Cidade Livre, mas até eu sabia que
era melhor ficar quieta. Se apresente ou vou atirar!,
alguém gritou do muro da cidade. As palavras eram bem mais impressionantes do
que a voz que as pronunciara. A rouquidão da juventude era audível. Apertei os
olhos atrás do sheema e avistei o garoto magricela apontando uma espingarda para mim do alto da muralha. Não devia
ter mais do que treze anos. Era
puro osso. Não parecia capaz de segurar a arma
direita mesmo que a sua
vida dependesse disso. E provavelmente dependia, já que estávamos em Miraji. Somos nós, Ikar, seu idiota,
gritou no meu ouvido o homem que me segurava». In Alwyn Hamilton, A Traidora do Trono, A
Rebelde do Deserto 2, 2016/2017, Editora Seguinte, Companhia das Letras, ISBN 978-855-534-029-1.
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