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de wikipedia e jdact
Terreille
«(…) Lucivar Yaslana, o mestiço eyrieno, observava os guardas que
arrastavam o homem em soluços para o barco. Não sentia qualquer compaixão pelo
condenado que comandara a fracassada revolta de escravos. No Território
denominado Pruul, a compaixão era um luxo a que nenhum escravo podia aspirar.
Tinha-se recusado a participar da revolta. Os líderes eram homens bons, mas não
possuíam a força, a determinação ou a coragem para fazer o que era necessário.
Não gostavam de ver derramamento de sangue. Ele não tinha participado. Apesar
disso, Zuultah, a Rainha de Pruul, o castigara. Os pesados grilhões em volta do
pescoço e dos pulsos já tinham deixado a sua pele em carne viva, e as costas
latejavam com a dor causada pelo chicote. Ele abriu as asas negras,
membranosas, numa tentativa de diminuir a dor que sentia. Na mesma hora, um
guarda acertou-lhe com um porrete, recuando logo em seguida, amedrontado pelo
débil silvo de raiva emitido por
Lucivar. Ao contrário dos outros escravos, incapazes de ocultar a aflição ou o
medo, os olhos dourados de Lucivar não demonstravam qualquer expressão, nenhuma
pista psíquica de emoções com as quais os guardas poderiam jogar enquanto
forçavam o homem em soluços a entrar no velho barco, com espaço somente para um
homem. Sem condições de navegar, a embarcação apresentava grandes buracos na
madeira apodrecida, o que, dado o seu propósito actual, apenas a valorizava. O
condenado era pequeno e subnutrido. Contudo, foram necessários seis guardas
para metê-lo no barco. Cinco deles agarraram-lhe a cabeça, os braços e as
pernas. O sexto untou os órgãos genitais do homem com gordura de bacon antes de
pôr sobre o barco uma tampa de madeira, que se encaixou perfeitamente. Tinha orifícios
talhados para a cabeça e as mãos. Assim que as mãos do homem foram agrilhoadas
a argolas de ferro na parte exterior do barco, a tampa foi fechada de modo que
ninguém, a não ser os guardas, a pudesse remover. Um dos guardas escrutinou o
homem aprisionado e balançou a cabeça, com uma falsa consternação. Dirigiu-se
aos outros: deveríamos lhe dar uma última refeição antes de jogá-lo ao mar.
Os guardas riram. O homem gritou, suplicando por ajuda. Um a um, os
guardas foram enfiando comida, zelosamente, na boca do homem, encaminhando
depois os outros escravos, como um rebanho, para os estábulos onde estavam
instalados. Hoje à noite terão diversão, rapazes, gritou um guarda, às
gargalhadas. Lembrem-se disso da próxima vez que decidirem deixar de servir a
Senhora Zuultah. Lucivar olhou por cima do ombro para, logo em seguida, desviar
o olhar. Atraídas pelo cheiro da comida, as ratazanas enfiaram-se pelos buracos
abertos na embarcação. O homem no barco gritou. As nuvens deslocavam-se
rapidamente sobre a lua, mantos cinzentos que ocultavam o luar. O homem no
barco não se moveu. Os seus joelhos eram feridas abertas, e sangravam devido
aos chutos que dava sem parar na cobertura do barco, num esforço para manter as
ratazanas à distância. As suas cordas vocais ficaram destruídas de tanto
gritar. Lucivar ajoelhou-se atrás do barco, com movimentos cuidadosos para
abafar o som das correntes. Não revelei nada a eles, Yasi, disse o homem, com a
voz rouca. Tentaram obrigar-me a falar, mas não falei. Restava-me um pouco de
honra. Lucivar levou uma taça aos lábios do homem.
Beba, disse, a sua voz não mais do que um murmúrio, misturando-se na
noite. Não, gemeu o homem. Não. Começou a chorar, um som seco e gutural
arrancado à sua garganta arruinada. Vamos,
depressa. Depressa. Vai ajudar. Apoiando a cabeça do homem, Lucivar levou a
taça aos lábios inchados. Depois de dois goles, Lucivar pousou a taça e afagou
a cabeça do homem suavemente com as pontas dos dedos. Vai ajudar, sussurrou. Sou
um Senhor da Guerra dos Sangue. Lucivar ofereceu-lhe novamente a taça e o homem
bebeu mais um gole. À medida que sua voz se tornava mais forte, as palavras
começaram a perder clareza. Você é um Príncipe dos Senhores da Guerra. Por que
fazem isso com a gente, Yasi? Porque
neles não existe qualquer honra. Porque neles não existe qualquer lembrança do
que é ser Sangue. A influência da Sacerdotisa Suprema de Hayll é uma praga que se vem espalhando pelo Reino durante séculos, consumindo lentamente
todos os Territórios que toca. Então,
talvez os plebeus tenham razão. Talvez os Sangue sejam o mal. Lucivar continuou a afagar a testa e as têmporas do homem. Não.
Somos o que somos. Nem mais, nem menos. O bem e o mal existem em todos os
povos. Actualmente, quem domina
é o mal que existe entre nós». In Anne Bishop, A
Filha do Sangue, Jóias Negras, 1998, Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-972-883-977-2.
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