sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

A Filha do Sangue. Anne Bishop. «Beba, disse, a sua voz não mais do que um murmúrio, misturando-se na noite. Não, gemeu o homem. Não. Começou a chorar, um som seco e gutural arrancado à sua garganta arruinada»

Cortesia de wikipedia e jdact

Terreille
«(…) Lucivar Yaslana, o mestiço eyrieno, observava os guardas que arrastavam o homem em soluços para o barco. Não sentia qualquer compaixão pelo condenado que comandara a fracassada revolta de escravos. No Território denominado Pruul, a compaixão era um luxo a que nenhum escravo podia aspirar. Tinha-se recusado a participar da revolta. Os líderes eram homens bons, mas não possuíam a força, a determinação ou a coragem para fazer o que era necessário. Não gostavam de ver derramamento de sangue. Ele não tinha participado. Apesar disso, Zuultah, a Rainha de Pruul, o castigara. Os pesados grilhões em volta do pescoço e dos pulsos já tinham deixado a sua pele em carne viva, e as costas latejavam com a dor causada pelo chicote. Ele abriu as asas negras, membranosas, numa tentativa de diminuir a dor que sentia. Na mesma hora, um guarda acertou-lhe com um porrete, recuando logo em seguida, amedrontado pelo débil silvo de raiva emitido por Lucivar. Ao contrário dos outros escravos, incapazes de ocultar a aflição ou o medo, os olhos dourados de Lucivar não demonstravam qualquer expressão, nenhuma pista psíquica de emoções com as quais os guardas poderiam jogar enquanto forçavam o homem em soluços a entrar no velho barco, com espaço somente para um homem. Sem condições de navegar, a embarcação apresentava grandes buracos na madeira apodrecida, o que, dado o seu propósito actual, apenas a valorizava. O condenado era pequeno e subnutrido. Contudo, foram necessários seis guardas para metê-lo no barco. Cinco deles agarraram-lhe a cabeça, os braços e as pernas. O sexto untou os órgãos genitais do homem com gordura de bacon antes de pôr sobre o barco uma tampa de madeira, que se encaixou perfeitamente. Tinha orifícios talhados para a cabeça e as mãos. Assim que as mãos do homem foram agrilhoadas a argolas de ferro na parte exterior do barco, a tampa foi fechada de modo que ninguém, a não ser os guardas, a pudesse remover. Um dos guardas escrutinou o homem aprisionado e balançou a cabeça, com uma falsa consternação. Dirigiu-se aos outros: deveríamos lhe dar uma última refeição antes de jogá-lo ao mar.
Os guardas riram. O homem gritou, suplicando por ajuda. Um a um, os guardas foram enfiando comida, zelosamente, na boca do homem, encaminhando depois os outros escravos, como um rebanho, para os estábulos onde estavam instalados. Hoje à noite terão diversão, rapazes, gritou um guarda, às gargalhadas. Lembrem-se disso da próxima vez que decidirem deixar de servir a Senhora Zuultah. Lucivar olhou por cima do ombro para, logo em seguida, desviar o olhar. Atraídas pelo cheiro da comida, as ratazanas enfiaram-se pelos buracos abertos na embarcação. O homem no barco gritou. As nuvens deslocavam-se rapidamente sobre a lua, mantos cinzentos que ocultavam o luar. O homem no barco não se moveu. Os seus joelhos eram feridas abertas, e sangravam devido aos chutos que dava sem parar na cobertura do barco, num esforço para manter as ratazanas à distância. As suas cordas vocais ficaram destruídas de tanto gritar. Lucivar ajoelhou-se atrás do barco, com movimentos cuidadosos para abafar o som das correntes. Não revelei nada a eles, Yasi, disse o homem, com a voz rouca. Tentaram obrigar-me a falar, mas não falei. Restava-me um pouco de honra. Lucivar levou uma taça aos lábios do homem.
Beba, disse, a sua voz não mais do que um murmúrio, misturando-se na noite. Não, gemeu o homem. Não. Começou a chorar, um som seco e gutural arrancado à sua garganta arruinada. Vamos, depressa. Depressa. Vai ajudar. Apoiando a cabeça do homem, Lucivar levou a taça aos lábios inchados. Depois de dois goles, Lucivar pousou a taça e afagou a cabeça do homem suavemente com as pontas dos dedos. Vai ajudar, sussurrou. Sou um Senhor da Guerra dos Sangue. Lucivar ofereceu-lhe novamente a taça e o homem bebeu mais um gole. À medida que sua voz se tornava mais forte, as palavras começaram a perder clareza. Você é um Príncipe dos Senhores da Guerra. Por que fazem isso com a gente, Yasi? Porque neles não existe qualquer honra. Porque neles não existe qualquer lembrança do que é ser Sangue. A influência da Sacerdotisa Suprema de Hayll é uma praga que se vem espalhando pelo Reino durante séculos, consumindo lentamente todos os Territórios que toca. Então, talvez os plebeus tenham razão. Talvez os Sangue sejam o mal. Lucivar continuou a afagar a testa e as têmporas do homem. Não. Somos o que somos. Nem mais, nem menos. O bem e o mal existem em todos os povos. Actualmente, quem domina é o mal que existe entre nós». In Anne Bishop, A Filha do Sangue, Jóias Negras, 1998, Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-972-883-977-2.

Cortesia de SaídadeEmergência/JDACT