jdact
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de Agosto de 1914
«(…) Que cancelemos tudo por um papel?
Olhou-me com raiva. Vais desiludir a cidade inteira, todo o povo reunido para
celebrar aquele que será, sem dúvida, o casamento mais importante dos últimos tempos
ou mesmo de sempre em Grasse? Duas das suas famílias de elite formalmente unidas.
É um sonho, Fleurette. Não arruínes o sonho, o optimismo, quando todos os homens
capazes da cidade estarão prestes a marchar para servir o seu país. Precisamente!
Como poderemos ter a certeza da oficialização dos documentos legais sem a presença
de Aimery? Suspeitei que não teria uma resposta pronta para aquilo. Era o meu último
esforço. A minha última defesa. Chocou-me perceber que estava mais do que pronto
para mim, com a voz repleta de desdém.
A declaração de guerra será bravata
alemã. Teremos de cumprir os nossos deveres de mobilização, mas suspeito que voltaremos
para casa dentro de uma semana. Duas, no máximo. Durará pouco e Aimery voltará
para casa, mas, por agora, quer deixar Grasse como homem casado, possivelmente com
um herdeiro já semeado. E assegurar-te-ás da concretização de todas as expecptativas.
É o teu dever. A repulsa fez-me fechar os olhos. Falava do meu corpo como se fosse
uma terra pronta para ser lavrada e... Era demasiado medonho para contemplar.
Era impossível responder àquela tirada
do meu irmão. Fiquei muda. Arregalei os olhos e fixei as mãos enluvadas e o pequeno
volume sob a luva no terceiro dedo da mão esquerda. O brilho carmesim desafiava-me.
Era um rubi de meio quilate colocado entre curvas de diamantes de corte simples
e em rosa. O resultado era um anel com a forma de um olho..., e olhava-me por baixo
da renda com um brilho acusador. Aimery não podia pedir-me em casamento com um anel
herdado. Não tinha nada da sua mãe e suspeitei que, mesmo que tivesse alguma coisa
sua, tê-la-ia ignorado. Aquele anel tinha sido desenhado com grande despesa em
Paris, mas sem o meu envolvimento, claro. E, por isso, reflectia apenas Aimery...
Era faustoso, sem dúvida absurdamente caro, ostentativo com as suas cores
vivas, exigindo atenção. A sua forma era estranha e provocava já em mim a consciência
sinistra de que me espiaria sem cessar. Odiava-o, mas também era verdade que todos
os pormenores daquele casamento me pareciam desesperantes.
Uma dor estranha, aguda e agoniante,
envolvia-me na carruagem claustrofóbica. Estávamos no pino do Verão e as flores
que segurava e que me enfeitavam o cabelo podiam murchar. Fora esse o motivo avançado
para não viajarmos num landau aberto. Trocista, decidi que o verdadeiro motivo seria,
provavelmente, a preocupação de Henri com o seu cabelo e com a brilhantina cuidadosamente
aplicada. A dor intensificou-se. Talvez entrasse em pânico como quando Felix
cortou os dedos com uma foice de alfazema ou como na manhã do piquenique de Junho,
quando caí do cavalo e as vozes de todos me pareciam demasiado distantes..., ou
como no dia em que morreu a minha mãe, um acontecimento para além da minha compreensão
de criança, recordando, mesmo assim, o corpo do meu pai parecendo perder a solidez,
como um saco de pétalas de rosa, sem conseguir compreender porquê.
Não costumava sucumbir a caprichos
e, em minha defesa, estas memórias pertenciam a acontecimentos isolados e emocionalmente
intensos que conseguia conjurar com sinceridade. A ansiedade daquele dia não me
parecia algo que passasse ou que alguém pudesse tornar melhor com a sua vinda.
Aquele dia era o início de uma vida nova que me assustava. O desejo de desaparecer
de tudo aquilo era suficientemente avassalador para parecer que tentava libertar
parte de mim..., o meu corpo e o meu íntimo precisavam de se separar para conseguir
suportar o dever que esperavam que cumprisse». In Fiona McIntosh, O Perfume
Secreto, 2015, Quinta Essência, Oficina do Livro, 2016, ISBN 978-989-741-578-4.
Cortesia de
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