terça-feira, 8 de janeiro de 2019

O Primeiro Herói. José C. Oliveira. «O escrivão à mesa sustém a pena no ar, e retruca, cauteloso, sem que retire os olhos do mapa: Senhor Egas. Querei-lo assim vós, tanto como vosso irmão Ermígio Moniz…»

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Afonso Henriques
Nascimento de uma nação...
«(…) Nas muralhas do castelo de Guimarães, os homens de armas, petrificados, vêem muitos dos tocheiros e archotes apagarem-se perante aquele urro que parece vindo das mais profundas fundações do castelo. Dentro em pouco, todos se confundem com a pedra daquela massa batida pela chuva.
Perde-se aquele berro e o desespero que ele traz na chuva da noite onde morre a esperança expansionista do Condado. E na distância, que ainda protela a chegada de tão definitivas novas ao solar dos Ribadouro, onde a pena do escrivão tece o que é, e a crença do nascimento anunciado e muito esperado do herdeiro projecta o que os destas terras querem. Tece-se assim o Condado, longa mas precisamente, na solidão, até quase se perder na escuridão da sala o homem debruçado sobre a mesa, não fossem duas velas grossas que iluminam os muitos documentos e o grande pergaminho onde a pena conclui a forma de um mapa de França, a que se segue a Península Ibérica, com Aragão, Navarra, Castela e Leão, e a sul e a este os dois terços da ocupação muçulmana.
De tão imóvel, dobrado sobre a mesa como se dela fazendo parte, parece o corpo já só ter préstimo naquela posição. E engrossa com a pena afiada o traço que delimita o Condado Portucalense, com o Reino da Galiza logo pegado a norte, e apertado entre o mar a oeste e Leão e Castela a leste. No topo do mapa desenha de seguida: ano de Deus nosso senhor de 1110. Concentrado no desenho, não se apercebe de quem chega, veludos e couros ricos, espada à cintura, vindo de trás dele, e lhe assusta o traço quando fala, dedo sobre o mapa, desenhando o que diz. É Egas Moniz: deixai lá o que é, e desenhai antes, a traço largo e que se veja, o que vai ser. De acima do rio Minho, por aqui abaixo e até ao Atlântico que lambe os Algarves. Porque se Rei parece ainda não termos, a tempo teremos, e com a Santa Sé por ele, porque muitos daqui o querem assim, e Deus Nosso Senhor também...
O escrivão à mesa sustém a pena no ar, e retruca, cauteloso, sem que retire os olhos do mapa: Senhor Egas. Querei-lo assim vós, tanto como vosso irmão Ermígio Moniz, e mais as outras famílias destas nossas terras. Mas a mim cabe saber e escrever o que é para depois ir ao que muito queremos que venha a ser. Não colhe Egas de surpresa, aquele arrazoar capaz de esfriar as almas comuns. Porque o sabe assim sem mal, será por preguiça das tripas, mas é homem preparado e de rigor, e confia nele mais do que em muitos:
Só vos deixo desenhar isso para depois podermos recordar o que era, mui diferente do que será e que depois me mostrareis, e de seguida a todos. Porque ainda hoje, e porque Deus Nosso Senhor assim o quer, teremos notícia de quem nos dará um Reino... Do aparo que o escrivão mantém suspenso no ar cai um pingo de tinta sobre Guimarães, e alastra o negro sorvendo a cidade». In José Carlos Oliveira, D. Afonso Henriques, O Primeiro Herói, 2016, Oficina do Livro, 2016, ISBN 978-989-741-419-0.
                           
Cortesia de OdoLivro/JDACT