Afonso
Henriques
Nascimento de
uma nação...
«(…) Nas muralhas do castelo de Guimarães,
os homens de armas, petrificados, vêem muitos dos tocheiros e archotes apagarem-se
perante aquele urro que parece vindo das mais profundas fundações do castelo. Dentro
em pouco, todos se confundem com a pedra daquela massa batida pela chuva.
Perde-se aquele berro e o desespero
que ele traz na chuva da noite onde morre a esperança expansionista do Condado.
E na distância, que ainda protela a chegada de tão definitivas novas ao solar dos
Ribadouro, onde a pena do escrivão tece o que é, e a crença do nascimento anunciado
e muito esperado do herdeiro projecta o que os destas terras querem. Tece-se assim
o Condado, longa mas precisamente, na solidão, até quase se perder na escuridão
da sala o homem debruçado sobre a mesa, não fossem duas velas grossas que iluminam
os muitos documentos e o grande pergaminho onde a pena conclui a forma de um mapa
de França, a que se segue a Península Ibérica, com Aragão, Navarra, Castela e Leão,
e a sul e a este os dois terços da ocupação muçulmana.
De tão imóvel, dobrado sobre a mesa
como se dela fazendo parte, parece o corpo já só ter préstimo naquela posição. E
engrossa com a pena afiada o traço que delimita o Condado Portucalense, com o Reino
da Galiza logo pegado a norte, e apertado entre o mar a oeste e Leão e Castela a
leste. No topo do mapa desenha de seguida: ano de Deus nosso senhor de 1110.
Concentrado no desenho, não se apercebe de quem chega, veludos e couros ricos, espada
à cintura, vindo de trás dele, e lhe assusta o traço quando fala, dedo sobre o mapa,
desenhando o que diz. É Egas Moniz: deixai lá o que é, e desenhai antes, a traço
largo e que se veja, o que vai ser. De acima do rio Minho, por aqui abaixo e até
ao Atlântico que lambe os Algarves. Porque se Rei parece ainda não termos, a tempo
teremos, e com a Santa Sé por ele, porque muitos daqui o querem assim, e Deus Nosso
Senhor também...
O escrivão à mesa sustém a pena no
ar, e retruca, cauteloso, sem que retire os olhos do mapa: Senhor Egas. Querei-lo
assim vós, tanto como vosso irmão Ermígio Moniz, e mais as outras famílias destas
nossas terras. Mas a mim cabe saber e escrever o que é para depois ir ao que muito
queremos que venha a ser. Não colhe Egas de surpresa, aquele arrazoar capaz de esfriar
as almas comuns. Porque o sabe assim sem mal, será por preguiça das tripas, mas
é homem preparado e de rigor, e confia nele mais do que em muitos:
Só vos deixo desenhar isso para depois
podermos recordar o que era, mui diferente do que será e que depois me mostrareis,
e de seguida a todos. Porque ainda hoje, e porque Deus Nosso Senhor assim o quer,
teremos notícia de quem nos dará um Reino... Do aparo que o escrivão mantém suspenso
no ar cai um pingo de tinta sobre Guimarães, e alastra o negro sorvendo a cidade».
In
José Carlos Oliveira, D. Afonso Henriques, O Primeiro Herói, 2016, Oficina do
Livro, 2016, ISBN 978-989-741-419-0.
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