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A
filha do rei. 1470
«(…)
Um dia, a minha mãe entrou de rompante na sala em que eu
tinha uma aula de música e disse-me que me despachasse porque tínhamos que
fugir. Para onde vamos, mamã?, gritei, correndo atrás dela, agarrada ao meu
alaúde. Despacha-te, despacha-te!, era só o que ela dizia. Atravessámos
apressadas os salões do castelo, atrás dos meus meios--irmãos Tom e Dick Grey e
dos criados que levavam ao colo as minhas irmãs Maria e Cecília, e fugimos
pelas escadas da torre. Atravessámos o pátio ventoso e entrámos nos claustros
da Abadia de Westminster. Um grupo de monges veio ao nosso encontro e abriu a
porta da sala do capítulo para onde nos apressámos a entrar. Aqui no santuário
estarão a salvo, aconteça o que acontecer, disseram eles e acenderam uns círios
porque começava a anoitecer. A sala octogonal era grande, gelada e vazia. A
minha mãe sentou-se na palha que cobria o chão e desatou a soluçar. A avó Jacquetta
ajoelhou-se ao lado dela. Tem fé, Bel. Sê forte. Lembra-te do bebé que trazes
no ventre. Eduardo voltará. Dar-lhe-ás um filho, se Deus quiser. Mamã, tenho fome,
disse eu. Oh, que desgraça, que desgraça!, exclamou a minha mãe. Não temos nada
para comer? Isabel, explicou a avó Jacquetta. Se fores boazinha, talvez os
monges nos tragam pão de manhã. Agora, vai dormir. Obedeci e enrosquei-me em
cima da palha. Sonhei com o meu pai nessa noite e em muitas noites a fio.
A
medida que as semanas passavam, os meus irmãos, Tom e Dick Grev, que sempre me
tinham hostilizado por o meu pai ser rei e o deles um simples cavaleiro, tornarem-se
mais brandos para comigo. Tinham nascido do primeiro casamento da minha mãe com
sir John Grey, morto em combate antes de a mãe desposar o papá. Dado o comportamento
deles, era difícil adivinhar que Tom era um homem à beira dos treze anos e que
Dick só tinha menos dois, pois mais pareciam rapazes brigões do que jovens
cortesãos com boas maneiras. A culpa é toda do teu pai, exclamaram eles. Perdeu
o trono e fugiu! Não é, não é!, exclamei, desatando a chorar. Mas sabia que
eles tinham razão. O irmão do Fazedor de Reis, a cujo filho, Jorge Neville, eu
estava prometida, virara-se contra o papá e obrigara-o a fugir de Inglaterra.
Agora o papá encontrava-se na Borgonha, a tentar formar um exército para que pudesse
lutar pelo seu trono.
Os
dias custavam-nos muito a passar. Estávamos sempre com frio e com fome e
recebíamos poucas visitas. Um dos que aparecia era um açougueiro chamado John
Gould. Usava um avental ensanguentado, mas a carne que nos trazia por caridade
alegrava-me o coração e confortava-me o estômago. Por gratidão, incluí o seu
nome nas minhas orações diárias. Outra visita frequente era a de frei Bungery,
de quem eu também não gostava porque havia qualquer coisa estranha nele. Mas a
minha mãe e a minha avó não sentiam o mesmo e recebiam-no calorosamente, porque
ele lhes trazia notícias. Juntavam-se a um canto da sala, cochichavam e
partilhavam segredos.
Na
véspera do Dia de Todos os Santos, quando a minha mãe estava prestes a dar à
luz, os meus irmãos convidaram-me para brincar com eles. Depois, fecharam-me na
adega. Estava escuro e húmido, e assustei-me por ficar sozinha. Bati à porta,
gritei por socorro enquanto pude, mas de nada serviu e ninguém apareceu. Por
fim, cansada, adormeci no chão de pedra entre as pipas de vinho. Uns sons
estranhos acordaram-me e sentei-me, a esfregar os olhos. Era uma cantilena, que
vinha de trás dos cascos de vinho junto da parede mais distante. A luz das
tochas projectava sombras a toda a volta, mas eu distingui três vultos sombrios
e encapuzados» In Sandra Worth, A Favorita do Rei, A Primeira rainha Tudor, 2008,
tradução de Maria F. Duarte, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2011, ISBN
978-989-657-165-8.
Cortesia
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