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A filha
do rei. 1470
«(…)
Apeteceu-me fugir, mas tive medo de me mexer. Enchi-me de coragem, aproximei-me
mais, a rastejar, e espreitei por trás de um tonel as sombras à minha frente. Embora
o corredor entre os barris fosse estreito, eu vi perfeitamente a zona iluminada
pelas tochas entre as abóbadas de pedra e as escadas que davam acesso à sala do
capítulo. Havia um altar encostado à parede, drapejado de negro e sobre o qual
se via uma taça metálica de oferendas e uma braseira. Algumas velas acesas
tremeluziam no chão em redor dos vultos, o que não permitia distinguir com clareza
as suas feições quando eles se deslocavam, mas consegui ver uma porta desenhada
a giz no chão de pedra, aos pés deles. Havia quatro velas acesas, uma em cada canto
do desenho do portão.
Fixei-me
nos três vultos negros encapuzados. O gordo podia ser frei Bungey. As formas dos
outros dois não se distinguiam por baixo das capas, mas pareceram-lhe
familiares. Estavam em contra-luz, na sombra, de costas para mim, com o rosto
oculto. Em nome do Pacto firmado entre Ti e a Raça Humana, convoco-te! Ouve e
Recorda! Das Portas do Inferno, convoco-te! Estremeci ao ouvir a voz rouca do
homem encapuzado. Atirou um punhado de qualquer coisa para a braseira e as chamas
irromperam; em seguida, um rolo de fumo elevou-se no ar. Pouco depois o aroma
do incenso encheu o recinto. Nergal, Senhor da Oferenda da Batalha, Destruidor
das cidades do Inimigo, Devorador da carne do Homem, lembra-te! O homem
estendeu-se no chão. Porque o que o vento traz só pode ser destruído por aquele
que conhece o vento; e o que vem do mar só pode ser destruído por aquele que
conhece a água. Assim está escrito no antigo pacto.
O
encapuzado levantou-se outra vez, pegou na taça, pô-lo no chão e tirou qualquer
coisa de trás do altar drapejado. Um coelho branco guinchou quando ele o
agarrou pelo cachaço. O homem ajoelhou-se e ergueu a faca. O animal gritou e
tentou libertar-se. A lâmina faiscou à luz das tochas e ele enterrou-a com força.
Nergal, Deus do Sacrifício, lembra-te! O homem ergueu a taça no ar, voltou a
pousá-la e espalhou farinha branca à volta do círculo, duas vezes. Virou-se para
o altar e levantou os braços acima da cabeça. Corri para o tonel que estava à
minha frente e pisquei os olhos na sombra, com o coração aos pulos, porque
sabia que não devia estar ali. Bem sabes que os espíritos malignos são sete,
pelos sete mascarados que arrancam o coração de um homem e zombam dos seus
deuses. Encolhi-me atrás do tonel e tapei a boca com a mão para sufocar um grito.
O homem vestira a pele de um burro! Por instantes, receei que me ouvissem. Ele
colocou a taça em cima da braseira, fez uns gestos e afastou-a. Tirou uma figura
de cera da taça e ergueu-a. Tentei ver do que se tratava através do fumo. Um
urso? O homem atirou-o para o recipiente metálico.
Ferve,
ferve! Arde, arde! Invoco-vos, Deuses da Noite! O urso está atormentado pela
dor. Não consegue endireitar-se nem deitar-se, nem de dia nem de noite. Tem a
boca cheia de cordas. A sua alegria é a tristeza e a sua diversão é o
sofrimento! O homem pegou numa corda cheia de nós e atirou-a para o fogo. A
palavra da sua condenação foi pronunciada. O seu nó desfez-se. A sua obra foi
destruída... Os meus dentes começaram a bater. Quem era o Urso? Porque queriam eles
desfazer o seu nó? O que significava aquilo? Eu não percebia nada, mas sabia que
devia forçar-me a estar quieta. Se eles me descobrissem, poderiam atirar-me
também para o caldeirão. Encolhi-me ainda mais e passei os braços à volta dos
joelhos para me manter hirta e imóvel». In Sandra Worth, A Favorita do Rei, A
Primeira rainha Tudor, 2008, tradução de Maria F. Duarte, Planeta Manuscrito,
Lisboa, 2011, ISBN 978-989-657-165-8.
Cortesia
de PlanetaM/JDACT