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de wikipedia e jdact
O
Príncipe Estrangeiro
«(…) Um burburinho percorreu a multidão. Estaria mentindo se dissesse que isso não me deixou arrepiada.
E mentir era pecado. Fazia quase seis meses que eu estivera em Fahali com
Ahmed, Jin, Shazad, Hala e os gêmeos Izz e Maz. Nós sete contra dois exércitos
e Noorsham, um demdji transformado em arma pelo sultão, e que por acaso era meu
irmão. Enfrentámos forças muito maiores que nós e um ser devastadoramente
poderoso. Mas sobrevivemos. A história da batalha de Fahali viajou pelo deserto
mais rápido do que a dos jogos do sultim. Eu a ouvi dezenas de vezes, contada
por pessoas que não sabiam que a rebelião estava ali. As nossas proezas ficavam
maiores e menos plausíveis cada vez que eram recontadas, mas o relato sempre
terminava do mesmo jeito, com a sensação de que a história ainda não tinha
acabado. De um jeito ou de outro, o deserto não seria o mesmo após aquela
batalha.
A lenda da Bandida de Olhos Azuis havia crescido para além
desse relato, até eu me transformar numa história que mal reconhecia. Diziam
que a Bandida de Olhos Azuis era uma ladra, e não uma rebelde. Que seduzia
pessoas para obter informações para o príncipe. Que havia assassinado o próprio
irmão no campo de batalha. Essa era a versão que eu mais odiava. Talvez porque,
por um momento, com o dedo no gatilho, ela quase se tivesse tornado realidade.
Mas eu o deixara escapar. O que era tão ruim quanto matá-lo. Ele estava em
algum lugar, com todo aquele poder. Mas, diferente de mim, não tinha outros
demdjis para ajudá-lo. Às vezes, tarde da noite, depois de todos irem dormir,
eu dizia em voz alta que ele estava vivo, só para saber se era verdade ou não.
Até então, conseguira pronunciar as palavras sem pestanejar. Mas tinha medo de
que chegasse o dia em que não seria assim. Isso significaria que era mentira,
que meu irmão havia morrido, sozinho e
assustado, em algum lugar do deserto impiedoso e devastado pela guerra.
Se ela é tão perigosa quanto dizem, deveríamos matá-la de uma vez, alguém da multidão
gritou. Era um homem com uma faixa militar amarela brilhante cruzando o peito.
Parecia que tinha sido costurada a partir de farrapos. Notei que outros também
a vestiam. Deviam ser os recém-nomeados guardas de Saramotai, já que a guarda
real havia sido assassinada. O homem que falou segurava uma arma apontada para a minha barriga. Feridas naquela região não eram nada legais.
Matavam lentamente. Mas
se ela for a Bandida de Olhos Azuis, trabalha
para o príncipe rebelde, outra pessoa falou. Isso não significa
que está do nosso lado? Essa era a pergunta de um milhão de pessoas. Jeito
curioso de tratar um aliado,
disse, exibindo as mãos atadas. Um burburinho percorreu a multidão. Aquilo era
bom. Significava que eles não eram tão unidos quanto pareciam de fora da sua muralha impenetrável. Então, já que
somos todos amigos, que tal me
desamarrar para podermos conversar? Bela tentativa, Bandida. Hossam segurou-me mais firme. Não vamos dar-te a
chance de botar as mãos numa arma. Ouvi dizer que matou uma dúzia de homens com
uma única bala. Eu tinha certeza de que isso não era possível. Mas não
precisava de uma arma para derrubar doze homens.
Era quase engraçado. Eles haviam usado uma corda para me prender,
não o ferro que me tornaria tão
humana quanto eles. Daquele jeito, eu poderia erguer todo o deserto contra
aquelas pessoas. O que significava que era capaz de causar mais dano de mãos atadas do que com uma arma. Mas o plano não era causar estrago
nenhum». In Alwyn Hamilton, A Traidora do Trono, A
Rebelde do Deserto 2, 2016/2017, Editora Seguinte, Companhia das Letras, ISBN
978-855-534-029-1.
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