quinta-feira, 14 de março de 2019

Afonso Henriques. O Homem. Cristina Torrão. «Uma chama de fúria assomou nos olhos castanhos da rainha, que, porém, logo se apagou. Dona Teresa ensaiou até novo sorriso…»

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«(…) Meu primo foi coroado rei da Galiza ainda criança, há mais de dez anos. Estou decidida a prosear com ele. Não lhe será Leão e Castela herança que baste? Afonso arqueou as sobrancelhas, espantado: no lugar dele, eu não prescindia de nada. Pois então, atalhou Fernão Peres, num tom irónico, ainda bem que é com ele que temos de prosear, e não contigo. Irritado com novo intrometimento, Afonso dirigiu-se à mãe: ainda não vejo o que a minha investidura de cavaleiro tem a ver com esta história. Tua mãe, insistiu Fernão Peres, pretende recordar a el-rei que tem um herdeiro varão, neto do imperador, tal como ele, reforçando as suas pretensões... Não podemos falar a sós? Afonso já não disfarçava a sua irritação, mas Fernão Peres, despeitado pela interrupção, replicou: não há nada que lhe tenhas para dizer que eu não possa ouvir. O jovem respirou fundo e dirigiu-se-lhe, olhando-o firme: exijo falar a sós com minha mãe! Certamente, concordou dona Teresa, lançando um olhar repreensivo ao amante. Subamos ao segundo andar, sugeriu Afonso, virando as costas ao brilho furioso nos olhos verdes do nobre galego.
Chegados ao aposento que dividia com os seus companheiros, o jovem, esgotado do treino, livrou-se da loriga, enquanto sua mãe se sentava no único banco que ali se encontrava. Afonso sentou-se, por fim, sobre um dos sacos de palha e considerou: não tencionais, então, prestar homenagem a meu primo... Porque haveria? Insisto em que a herança do imperador seja dividida: os reinos de Leão e Castela para o sucessor de minha irmã; o reino da Galiza, que inclui o condado Portucalense, para mim. Embora soubesse que os senhores portucalenses nunca aceitariam a submissão ao reino galego, Afonso agradava-se destes planos de sua mãe. Inquiriu: credes mesmo que o podereis convencer a prescindir da Galiza? Possuo o apoio da mais poderosa família galega. Estas palavras tornaram a encrespar o jovem: apoio? No que a isso diz respeito, andais com má fortuna, ultimamente. Uma chama de fúria assomou nos olhos castanhos da rainha, que, porém, logo se apagou. Dona Teresa ensaiou até novo sorriso: esses ricos-homens que me viram costas parecem adorar-te. Com certeza que lhes agradará a tua investidura. O jovem engoliu a sua desilusão e retorquiu, em tom despreocupado: começo a compreender o vosso repentino interesse pela minha pessoa. Exibindo o vosso herdeiro, não só reforçareis as vossas exigências perante meu primo, como esperais agradar aos senhores portucalenses. És sagaz, sais a mim! Por Afonso Raimundes, não posso responder. Mas, quanto aos barões, digo-vos já que a cartada de nada vos adiantará. O problema deles chama-se Fernão Peres Trava!
Dona Teresa empertigou-se: estás a desviar-te do assunto. Queres, ou não, ser armado cavaleiro? Não te agrada dar um sinal a teu primo, recordá-lo de que existes e de que és, tanto como ele, neto do falecido Afonso VI? O jovem considerou a oportunidade que se lhe oferecia. E acabou por concordar acompanhar sua mãe e Fernão Peres.

Preparou-se a cerimónia e foi em Zamora, nas margens do rio Douro, cidade leonesa que pertencia ao senhorio de sua mãe, que Afonso Henriques se armou cavaleiro, em Março de 1126. Os combatentes a cavalo hispânicos não possuíam obrigatoriamente origem nobre, os cavaleiros vilãos dos concelhos, também conhecidos por coteifes, eram uma ajuda preciosa no combate contra os mouros. Mas o cavaleiro originário da alta nobreza era considerado um guerreiro divino, ao serviço de Deus, combatendo os infiéis e protegendo os pobres e os fracos. Havia, por isso, que cumprir um ritual. Afonso purificou o corpo e a alma: tomou banho, jejuou um dia inteiro e passou a noite em vigília, numa capela. De manhã cedo, entrou na catedral de Zamora, envergando uma vestimenta branca e comprida, que ostentava a cruz azul do condado Portucalense. O bispo abençoou a espada e as esporas, em cima do altar. Afonso tomou-as, armando-se ele próprio, como o faziam os filhos de monarca. Em seguida, acompanhou o séquito de sua mãe ao lugar de Ricobayo, a fim de se encontrarem com o jovem soberano. Afonso estava curioso, não só quanto à própria aparência do primo, como quanto à sua reacção, perante as exigências da tia». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.

Cortesia de EÉsquilo/JDACT