jdact
«(…) Afonso VII recebeu-os inesperadamente satisfeito,
congratulando-se por finalmente travar conhecimento com o infante portucalense
e felicitando-o pela sua investidura. Envergava uma túnica vermelha debruada a
fios de ouro no decote, nos punhos largos e na bainha. Adornavam-na as armas de
Leão e Castela: um leão vermelho rampante sobre fundo prateado e um castelo
dourado sobre fundo escarlate. Afonso crera que o primo o igualasse em altura,
mas era um palmo mais baixo. Usava o cabelo mais curto e o bigode caía-lhe
mortiço sobre os lábios finos. O seu olhar possuía algo de baço e o jovem
portucalense achava-se incapaz de dizer se a satisfação que deles transparecia
era genuína. As conversações decorreram em ambiente ameno e nem a questão da
Galiza exaltou o jovem soberano. Sem deixar de sorrir, el-rei Afonso VII alegou
ter assuntos urgentes a resolver com o monarca aragonês, pelo que propôs adiar a questão da homenagem e da
herança da tia, solicitando a assinatura de um pacto, pelo qual dona Teresa se
comprometia a guardar a paz durante um ano. Assim se fez.
Um lacaio anunciou a chegada dos irmãos Soeiro e Gonçalo Mendes
Sousa a Guimarães, onde Afonso se encontrava com Egas Moniz e os seus dois
filhos mais velhos. Acabada a sua instrução, o infante, assim chamado por sua
mãe se intitular rainha, fizera de Guimarães a sua residência oficial e
havia novamente transformado o segundo andar da torre de menagem num aposento
digno de príncipe. Soeiro Mendes Grosso
e o irmão Gonçalo vinham, mais uma vez, discutir a situação do condado, que
se continuava a degradar. Afonso tivera razão: o facto de dona Teresa ter
promovido a sua investidura de cavaleiro, não apaziguara os barões
portucalenses. Ao insistir na sua ligação com Fernão Peres Trava, a rainha estava mais isolada do que nunca. O próprio
Afonso deixara, naquele ano de 1127, de ir à corte coimbrã, já não subscrevia
os diplomas de sua mãe. Os rumores de que a questão só se resolveria pela força
das armas aumentavam de tom. Naquele
serão frio de Outubro, os senhores reunidos em Guimarães especulavam sobre a
questão da homenagem que dona Teresa deveria prestar a Afonso VII. O pacto de
não-agressão por um ano, assinado em Ricobayo, já perdera a validade. O jovem
monarca passara a Primavera e o Verão na fronteira castelhano-aragonesa, mas
encontrava-se na Galiza, desde Setembro, exigindo o reconhecimento da sua
autoridade por parte de certos senhores que, à semelhança de dona Teresa, ainda
não lhe haviam prestado homenagem. E havia quem dissesse que planeava submeter
a sua tia pela força.
Quando Egas Moniz e Soeiro Mendes acusaram cansaço e
resolveram recolher-se, os mais novos ainda não sentiam sono. A fim de
continuarem o seu convívio, Afonso levou os três amigos para o conforto da sua
câmara e combinavam uma caçada ao javali, quando um lacaio veio segredar ao
ouvido do infante que Belmira acabara de chegar. A moça vinha mais cedo do que
o planeado, mas, para que ela não
esperasse na antecâmara fria, Afonso mandou-a entrar. Belmira surgiu descalça,
envergando apenas um vestido de linho grosseiro. Nem sequer trazia um xaile
pelos ombros e o príncipe perguntou-se como é que ela ali conseguia chegar
naqueles preparos, numa noite fria. Sorria, despreocupada, e Afonso notou como
também os seus companheiros se encantavam com os olhos brilhantes e os cabelos
ondulados da rapariga, que lhe caíam singelos pelas costas. Sem lhe dirigir
palavra, o príncipe fez-lhe sinal que se sentasse a um canto da mesa e logo
encetou a conversa com os amigos, sem, porém, deixar de notar a satisfação com
que Belmira encarou as fatias de presunto, as rodelas de chouriça e o pão fofo
de trigo, enriquecido com leite e ovos. Em momentos destes, Afonso
perguntava-se se a moça sentia afeição por ele, ou via apenas as vantagens
materiais que ele lhe proporcionava. Além das iguarias, Belmira apreciava o
facto de ele, em tempo frio, não se preocupar em apagar a lareira do aposento,
ao deitar-se, a fim de poupar lenha. Além disso, estava convencida de que nada
no mundo poderia ser mais fofo do que o leito do príncipe. Talvez as nuvens o
fossem, dizia, mas essas pairavam no céu e serviam de abrigo aos anjos. Afonso
também a deixava ir à cozinha buscar restos dos enchidos e dos assados, que ela
levava à mãe e aos irmãos pequenos». In
Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
Cortesia de EÉsquilo/JDACT