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«(…) Na sua dor o é mais ainda.
Sabe-o já, pois a própria rainha quebra o seu segredo ao converter a nave real
em voz pública do desconsolo. Sabe que o romano que ocupou o seu leito, aquele
hipócrita que, há apenas um ano, deixou-a grávida de dois príncipes, aquele
Marco António que ela fez aparecer nos grandes monumentos como dono e senhor de
Alexandria e depois monarca do Oriente inteiro, aquele vil, aquele animal,
tomou mulher em Roma. Sendo Cleópatra a mãe de seus filhos? As leis romanas só
reconhecem os filhos que Marco António teve com a primeira esposa, a infausta
Fúlvia... Epistemo inclinou-se para o mancebo, a fim de falar-lhe em tom mais
reservado. E já que falamos de filhos, precisaríamos de altas matemáticas para contar
os que António engendrou em quantas cidades visitou antes de chegar a
Alexandria!... A curiosidade do servidor dos deuses foi mais forte que o
recato. Tantos filhos de um amante tão miserável? Amante miserável, talvez;
esposo falso, quem sabe; mas também um reprodutor de estatura. É tão
impenetrável assim a clausura dos templos que não vos chega esse tipo de
notícia? Se a tua castidade não tivesse de se recriminar depois, eu te contaria
os transes a que os excessos da carne levavam António. Basta dizer que ele crê descender
do próprio Hércules e, além disso, ser apadrinhado por Baco! Cá entre nós, se
com tal combinação de fúria e selvageria não encheu de filhos todos os gineceus
do Império, as mulheres do século deveriam envergonhar-e, pois já não sabem
parir como as suas mães.
Ao inclinar todo o corpo para a
frente, em busca de maior segredo, deparou-se com uma expressão de repúdio. Sem
dúvida, zombas do meu sagrado ministério, já que invocas deuses estrangeiros. Deves
saber que os abomino e detesto o amante romano da rainha. O que ele representa
e todos os que são como ele. Quando, num movimento demasiado brusco, mostrou um
dos braços, Epistemo viu que estava raspado como a cabeça. Assim pôde saber que
se encontrava diante de um membro da sagrada ordem de Isis, pois os seus
acólitos são os mais obcecados inimigos da impureza dos pêlos, que tanto
ofendem a grande mãe; e, a fim de sentirem-se limpos e destarte tornarem-se
gratos aos seus olhos, devem raspar todo o corpo duas vezes por semana, o que
costuma ser objecto de zombaria por parte dos blasfemos e dos viajantes que chegam
de Roma. O mancebo provinha de um iseion
(templo de Ìsis) do Alto
Nilo, conforme contou com grande brevidade e economia de palavras, pois era de
natural austero. Também disse chamar-se Tot-més, em honra ao deus Tot. Então o
servo de Epistemo tratou-o de antiquado, pois os moços na moda preferem
chamar-se Hermes, derivação grega daquele nome que, no passado, ostentou o deus
com cabeça de íbis, padroeiro da sabedoria. Embora Epistemo quisesse
acrescentar frivolidade à grosseria do servo, deparou com o repúdio aberto de
Totmés. Resistia a qualquer outro comentário referente à sua pessoa, e só pareciam
interessar-lhe os camponeses da ribeira e os acontecimentos que se desenrolavam
no camarote da rainha. Tantas promessas de amor na boca de um romano só
poderiam acabar em luto!, continuou falando Epistemo.
De que adianta falar de António e
da sua boca, se hoje tudo se reduz a um abandono que logo, muito em breve, será
esquecimento? É a única coisa que entendo dessa história e de quantas giram em
torno do desamor. Sei que, no fim, todos somos esquecimento colocado nas mãos
de uma vontade mais elevada que os sonhos do mundo. De repente, um sobressalto
sacudiu os tripulantes. Silêncio!, exclamou Epistemo. Digna-se apresentar-se
diante de nós a suprema majestade de Cleópatra. Todos se ajoelharam». In Terenci
Moix, Cleópatra, Rainha e Mulher, Prémio Planeta de 1986, Globo, Livros
Loureiro, tradução de Eduardo Brandão, Wikipédia.
Cortesia
de LLoureiro/Globo/Wikipédia/JDACT