terça-feira, 16 de abril de 2019

Rainha e Mulher. Cleópatra. Terenci Moix. «De que adianta falar de António e da sua boca, se hoje tudo se reduz a um abandono que logo, muito em breve, será esquecimento? É a única coisa que entendo dessa história…»

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«(…) Na sua dor o é mais ainda. Sabe-o já, pois a própria rainha quebra o seu segredo ao converter a nave real em voz pública do desconsolo. Sabe que o romano que ocupou o seu leito, aquele hipócrita que, há apenas um ano, deixou-a grávida de dois príncipes, aquele Marco António que ela fez aparecer nos grandes monumentos como dono e senhor de Alexandria e depois monarca do Oriente inteiro, aquele vil, aquele animal, tomou mulher em Roma. Sendo Cleópatra a mãe de seus filhos? As leis romanas só reconhecem os filhos que Marco António teve com a primeira esposa, a infausta Fúlvia... Epistemo inclinou-se para o mancebo, a fim de falar-lhe em tom mais reservado. E já que falamos de filhos, precisaríamos de altas matemáticas para contar os que António engendrou em quantas cidades visitou antes de chegar a Alexandria!... A curiosidade do servidor dos deuses foi mais forte que o recato. Tantos filhos de um amante tão miserável? Amante miserável, talvez; esposo falso, quem sabe; mas também um reprodutor de estatura. É tão impenetrável assim a clausura dos templos que não vos chega esse tipo de notícia? Se a tua castidade não tivesse de se recriminar depois, eu te contaria os transes a que os excessos da carne levavam António. Basta dizer que ele crê descender do próprio Hércules e, além disso, ser apadrinhado por Baco! Cá entre nós, se com tal combinação de fúria e selvageria não encheu de filhos todos os gineceus do Império, as mulheres do século deveriam envergonhar-e, pois já não sabem parir como as suas mães.
Ao inclinar todo o corpo para a frente, em busca de maior segredo, deparou-se com uma expressão de repúdio. Sem dúvida, zombas do meu sagrado ministério, já que invocas deuses estrangeiros. Deves saber que os abomino e detesto o amante romano da rainha. O que ele representa e todos os que são como ele. Quando, num movimento demasiado brusco, mostrou um dos braços, Epistemo viu que estava raspado como a cabeça. Assim pôde saber que se encontrava diante de um membro da sagrada ordem de Isis, pois os seus acólitos são os mais obcecados inimigos da impureza dos pêlos, que tanto ofendem a grande mãe; e, a fim de sentirem-se limpos e destarte tornarem-se gratos aos seus olhos, devem raspar todo o corpo duas vezes por semana, o que costuma ser objecto de zombaria por parte dos blasfemos e dos viajantes que chegam de Roma. O mancebo provinha de um iseion (templo de Ìsis) do Alto Nilo, conforme contou com grande brevidade e economia de palavras, pois era de natural austero. Também disse chamar-se Tot-més, em honra ao deus Tot. Então o servo de Epistemo tratou-o de antiquado, pois os moços na moda preferem chamar-se Hermes, derivação grega daquele nome que, no passado, ostentou o deus com cabeça de íbis, padroeiro da sabedoria. Embora Epistemo quisesse acrescentar frivolidade à grosseria do servo, deparou com o repúdio aberto de Totmés. Resistia a qualquer outro comentário referente à sua pessoa, e só pareciam interessar-lhe os camponeses da ribeira e os acontecimentos que se desenrolavam no camarote da rainha. Tantas promessas de amor na boca de um romano só poderiam acabar em luto!, continuou falando Epistemo.
De que adianta falar de António e da sua boca, se hoje tudo se reduz a um abandono que logo, muito em breve, será esquecimento? É a única coisa que entendo dessa história e de quantas giram em torno do desamor. Sei que, no fim, todos somos esquecimento colocado nas mãos de uma vontade mais elevada que os sonhos do mundo. De repente, um sobressalto sacudiu os tripulantes. Silêncio!, exclamou Epistemo. Digna-se apresentar-se diante de nós a suprema majestade de Cleópatra. Todos se ajoelharam». In Terenci Moix, Cleópatra, Rainha e Mulher, Prémio Planeta de 1986, Globo, Livros Loureiro, tradução de Eduardo Brandão, Wikipédia.

Cortesia de LLoureiro/Globo/Wikipédia/JDACT