A
Ilha
«(…) Na verdade sempre me apercebia sem receio destes curtos
estremecimentos súbitos e secos, com a precisão de um bisturi, rápidos e
passageiros: espécie
de arrepios da própria casa, imaginava então, como se desligados da ilha,
embora sentisse e soubesse que todo o seu chão deslizava debaixo dos nossos
pés, mesmo quando eu arrastava o passo preguiçoso no passeio, ou até quando
estava a andar a cavalo, montada no seu dorso quente, logo adiante do pai, sentindo nas
costas a aspereza boa da sua farda, que tinha de vestir quando não estava no
hospital a tratar os doentes, bata branca a transmitir-me sossego, pois a sua
imagem de médico fazia-me acreditar ser detentor de um absoluto poder de cura, capaz de vencer a dor e
a morte. Então
lá vamos todos para a guerra!, gracejara
debilmente na véspera de partirmos de vapor para os Açores. E os olhos
azul-genciana da minha mãe encheram-se de lágrimas translúcidas, rosto ansioso,
muito bela e prisioneira de uma tristeza cativa que ainda a tornava mais bela
de tão frágil e insegura, prestes a estilhaçar-se.
Isto é a
guerra?, perguntei
inúmeras vezes durante o tempo em que vivemos na Horta, e ele respondia-me que
não, com a cabeça, apesar de quase sempre ao jantar alguém referir com
apreensão os aviões ruidosos e ameaçadores que continuavam a sobrevoar mar e
terra. Nas noites
em que ele se demorava junto da telefonia a ouvir as notícias, em seguida
desenhava a azul pequenos círculos num mapa de lustro pendurado numa das
paredes do seu pequeno escritório repleto de livros. Comentando baixo, enquanto
apontava o último círculo acabado de desenhar: os aliados já chegaram até aqui.
Sem perceber nada do que isso significava, mas julgando
detectar na sua voz o surdo tom do mistério, da ansiedade, e embora certa de
ele estar a referir-se à guerra, sempre guardava um rasto de esperança de que
estas suas palavras pudessem aludir às bruxas e às fadas, por mim imaginadas
num arrebatamento exultante, envoltas em brumas e neblinas na misteriosa ilha
do Pico, do outro lado do mar, mas quase diante da nossa casa, numa lenta distância
medida apenas pelas ondas altas.
Ficas quieta, à varanda com a tua
avó, a ver passar a procissão, sem
arrebatamentos!, mandara
o pai, e parecendo-me voltar a ouvir a sua voz austera parei
hesitante a meio da escada, o coração apertado debaixo do vestido branco de
musselina, com uma renda curta a delinear o peitilho de pequenas nervuras. Mas entretanto a música
aproximara-se muito, e as vozes que chegavam da rua tinham uma mistura de excitação,
de gravidade e de alegria, que me convocava e me atraía, a contrariar a imagem
de menina bicho-do-mato que me acusavam de ser arisca e fugidia. Desci de roldão até ao
último degrau de pedra esburacada pelos anos, e já na rua mal calcetada estaquei
encandeada pelo sol, rosto erguido a tentar seguir a grande nuvem espessa que
de súbito o destapara, e eu via correr no céu em direcção ao cume da ilha do
Pico ali à frente. Ofuscada e cega pela súbita claridade, sentia a cabeça a andar à
roda, aturdida, a respiração opressa, desordenada e dispersa pelo susto. Mas a
procissão estava já tão perto de mim que nem sequer tive possibilidade de
recuar, de me arrepender, voltar atrás para o amparo da escuridez da escada, e
sem saber como, fiquei diante do padre que vinha à frente empurrando o andor
pesado, olhar
baixo e contrito, arrastando a renda branca da saia pelo cisco, a poeira escura e as pedras miúdas à mistura com pequenas
folhas e pétalas maceradas, pisadas com descuido; logo atrás vinham os meninos
com capinhas escarlates, que tocavam pequenos sinos de prata ou baloiçavam os
turíbulos de onde saíam grossos rolos de fumo com um intenso cheiro a incenso,
que me entonteceu ainda mais». In Maria Teresa Horta, Meninas,
Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.
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