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e wikipedia
A
Hora do Diabo
«(…) A mais alta iniciação acaba pela pergunta
encarnada de se há qualquer coisa que exista. O mais alto amor é um grande
sono, como aquele em que nos amamos de dormir. Às vezes eu mesmo, que devera
ser um alto iniciado, pergunto ao que em mim é de além de Deus se estes deuses
todos e todos estes astros não serão mais que sonos de si mesmos, grandes
esquecimentos do abismo. Não pasme de que eu assim fale. Sou naturalmente
poeta, porque sou a verdade falando por engano, e toda a minha vida, afinal, é
um sistema especial de moral velado em alegoria e ilustrado por símbolos. Não
(disse ela rindo) sempre há de haver uma religião verdadeira... Sim (rindo
mais) ou então são todas falsas. Minha senhora, todas as religiões são
verdadeiras, por mais opostas que pareçam entre si. São símbolos diferentes da
mesma realidade, são como a mesma frase dita em várias línguas; de sorte que se
não entendem uns aos outros os que estão dizendo a mesma coisa. Quando um pagão
diz Júpiter e um cristão diz Deus estão a pôr a mesma emoção em termos diversos
da inteligência: estão a pensar diferentemente a mesma intuição.
O repouso de um gato ao sol é a mesma coisa que a leitura de um
livro. Um selvagem olha para a tormenta do mesmo modo que um judeu para Jeová, um
selvagem olha para o sol do mesmo modo que um cristão para o Cristo. E porquê,
minha senhora? Porque trovão e Jeová, sol e cristão, são símbolos diversos da
mesma coisa. Vivemos neste mundo dos símbolos, no mesmo templo claro e obscura treva
visível, por assim dizer; e cada símbolo é uma verdade substituível à verdade
até que o tempo e as circunstâncias restituam a verdadeira. Corrompo mas
ilumino. Sou a Estrela Brilhante da manhã, frase, por sinal, que já foi duas
vezes aplicada, não sem critério ou entendimento, a outro que não parece eu. O
meu marido disse-me uma vez que Cristo era o símbolo do sol... Sim, minha
senhora. E porque não será verdade o contrário que o sol é o símbolo de Cristo?
Mas o Senhor vira tudo do avesso... É o meu dever, minha
senhora. Não sou, como disse Goethe, o espírito que nega, mas o espírito que
contraria? Contrariar é feio... Contrariar actos, sim... Contrariar ideias, não.
E porquê? Porque contrariar actos, por maus que sejam, é estorvar o giro do mundo,
que é acção. Mas contrariar ideias é fazer com que nos abandonem, e se caia no
desalento e de aí no sonho e portanto se pertença ao mundo. Há, minha senhora,
com respeito ao que sucede neste mundo, três teorias distintas que tudo é obra
do Acaso, que tudo é obra de Deus, e que tudo é obra de várias coisas,
combinadas ou entrecruzadas. Pensamos, em geral, em termos da nossa
sensibilidade, e por isso tudo se nos volve num problema do bem e do mal; há
muito que eu mesmo sofro grandes calúnias por causa dessa interpretação.
Parece não ter ainda
ocorrido a ninguém que as relações entre as coisas supondo que haja coisas e
relações são complicadas demais para que algum deus ou diabo as explique, ou
ambos as expliquem. Sou o mestre lunar de todos os sonhos, o músico solene de
todos os silêncios. Lembra-se do que tem pensado quando, sozinha, está ante uma
grande paisagem de arvoredos e de luar? Não se lembra, porque pensou em mim, e,
devo dizer-lho, verdadeiramente não existo. Se existe qualquer coisa, não sei. As
aspirações vagas, os desejos fúteis, os tédios do vulgar, ainda quando o amamos,
os aborrecimentos do que não aborrece tudo isso é obra minha, nascida de
quando, deitado à margem de grandes rios do abismo, penso que também não sei
nada. Então o meu pensamento desce, eflúvio vago, às almas dos homens e eles
sentem-se diferentes de si mesmos». In Fernando Pessoa, A Hora do Diabo,
História e Alcance, Assírio e Alvim, Lisboa, 1997, ISBN 978-972-370-435-8
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