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A
Morte
«(…) As lágrimas correm compassadas,
precipitando-se algumas no vestido, outras no pescoço, outras ainda perdem-se,
alastram-se na pele, nas têmporas, perto da raiz dos cabelos. Mas a própria dor
é absorvida e apenas a tontura prevalece, e às vezes o medo. Olha. As pessoas
movem-se nas batas brancas, pequenas ou grandes manchas que se aproximam
parecem-lhe a ela que perplexas. O que dizem é-lhe indiferente. Afinal tudo lhe
é indiferente, apenas uma imagem, depois outra e outra, como num pesadelo. Foge
com a boca, move os braços. Forçam-na, geme guturalmente num enorme vómito que a trespassa. Debate-se: o
calor desce-lhe pelo corpo em avalanche, inundando-a. O tubo desce-lhe agora
pela garganta, contra sua vontade. Pára de se debater. Alguém que se debruça
acaricia-lhe os ombros e fala-lhe. Sabe quem é, vê-lhe a blusa verde a
escapar-se pela bata branca abotoada à pressa e uma terrível e infantil ternura
toma conta dela. Sente o líquido correr dentro do tubo para dentro de si.
Consegue entreabrir os dedos e aperta os braços da cadeira. As lágrimas tornam,
mas convulsas, sobre a palidez cadavérica do rosto arrepanhado. Largam-na:
primeiro é a agudez da loucura, depois uma total lassidão completa. Tem um sono
desesperado.
O
Desespero
Não sabia porque continuava ali torcendo as mãos,
torcendo os braços, enterrando as mãos nos cabelos. Ao comprido na erva húmida,
sentia nas ancas através da saia o frio áspero da terra. Ergueu as pernas
dormentes da posição, da mesma posição há tantas horas, e rodou a cabeça até
encontrar o tronco escuro da árvore mais perto, até lhe sentir o cheiro
molhado, verde, das folhas por entre as quais se descobria o negro do céu. Noite.
Sentou-se entontecida e às apalpadelas procurou a mala, encontrando-a à sua
esquerda: uma mancha escura, pequena. Mergulhou nela a mão até ao pulso e o
maço surgiu: uma mancha mais pequena seguida de outra ainda menor: o isqueiro.
Depois do ruído seco da mola a chama crepitou levemente e quando a aproximou
dos lábios iluminou-lhe o rosto, acentuando-lhe, endurecendo-lhe os traços: uma
boca desbotada, uns olhos adormecidos, sem expressão, afundados nas órbitas.
Aspirou o fumo, engoliu-o; a cabeça atirada para trás oscilava. Noite. (Há
quanto tempo está ali! Quando cheguei era apenas uma sombra, ao comprido.) Acabou-se, pensou. (Apaga o
cigarro no chão, passa as mãos pelos cabelos: olho-a.) Passa as mãos pelos
cabelos, alisa-os..., aquela figura lá ao fundo será uma mulher. Será uma
mulher, imaginou indiferente, quieta, a apagar o cigarro de encontro à humidade
da relva. Não sabia porque continuava a olhar o vulto imóvel delineado ao
fundo, de encontro ao desenho agudo do portão. Talvez. (Recuo sem coragem de
continuar. De joelhos, ela tenta erguer-se.) Deviam ajudar-me, pensou. Tem
frio. Junta os braços ao corpo mas o arrepio continua fazendo-a tremer;
encolhe-se mais. (Sinto o peso quente do seu casaco. Deve ser frio. Mas não dou
um passo. Nego-me a encará-la.) Estou velha, pensou. E o vulto imóvel espia-a
ou age como tal, sem no entanto se esconder. De pé o frio é menor. Longe da
humidade áspera da terra até o vento que se levantou a rolar silencioso pela
noite lhe parece quente. (Nada do que possa dizer lhe fará bem. Em casa
aguardam-na, esperam que a leve; apenas eu devo saber. Só eu sei. Mas eu olho-a
e não me aproximo. O ódio?) De pé, voltou a tremer de frio, a mala que trouxe
da rua, que nem tivera tempo de largar em casa, pendurada a bater-lhe nas
ancas. Fecha-a mal, tenta caminhar em direcção ao vulto que reconhecera;
desequilibra-se e agarra-se ao tronco escuro, escamoso, da árvore onde se
encostara ao sentar-se momentos antes». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o
Corpo, Publicações Europa América, colecção Século XX, 1984, ISBN
978-972-100-090-2.
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