jdact
1293.
Meia-noite. Ilha de Sumatra, Sueste Asiático
«(…) Os
únicos sinais de sua intromissão eram os crânios, entrançados através das
órbitas oculares com trepadeiras e pendurados dos galhos das árvores,
protegendo contra uma invasão ou incursão mais profunda. A doença mantivera os
selvagens à distância. Mas não por mais tempo. Com a fogueira cruel, a doença
fora afinal vencida, deixando apenas aquele punhado de sobreviventes. Aqueles
que não exibiam os vergões vermelhos. Sete noites atrás, os enfermos restantes
haviam sido conduzidos acorrentados aos navios ancorados, abastecidos com água
e comida. Os outros haviam ficado na praia, atentos a qualquer sinal de novos
casos da doença entre eles. O tempo todo,
os que haviam sido banidos para os navios gritaram através das águas,
implorando, chorando, rezando, amaldiçoando e dando berros estridentes. Porém,
o pior era a gargalhada ocasional, incitada pela loucura. Teria sido melhor ter
cortado a garganta deles com um punhal misericordioso e rápido, mas todos
receavam tocar o sangue dos enfermos. Por isso eles haviam sido enviados para
os navios e aprisionados com os que já estavam mortos ali. Então, quando o sol
se pôs naquela noite, um brilho estranho apareceu na água, acumulado em torno
das quilhas de dois barcos, espalhando-se sobre as águas negras e paradas como
leite derramado. Eles já tinham visto o brilho antes, nos tanques e canais sob
as torres de pedra da cidade amaldiçoada da qual haviam fugido. A doença
procurava escapar de sua prisão de madeira. Ela não lhes deixara escolha. Os
navios, todas as galeras, excepto a que fora reservada para a partida deles,
foram incendiados.
Masseo, o tio de Marco, andou por entre os homens que
sobreviveram. Acenou para que eles voltassem a cobrir a sua nudez, mas um
simples pano e lã tecida não podiam encobrir sua vergonha mais profunda. O que
nós fizemos..., disse Marco. Nós não devemos falar sobre isso, respondeu o pai,
e estendeu uma túnica na sua direcção. Diga uma palavra que seja sobre peste, e todos os países nos
evitarão. Nenhum porto nos deixará entrar nas suas águas. Mas agora queimamos
completamente o que restava da doença com um fogo que purificou a nossa frota e
as águas. Temos apenas de voltar para casa. Enquanto Marco vestia a túnica, seu
pai notou o que o filho havia desenhado antes na areia com uma vara. Contraindo
os lábios, o pai rapidamente desfez o desenho com um dos calcanhares e encarou
o filho. Città dei Morti. Um olhar suplicante fixou-se no seu rosto. Nunca,
Marco... nunca...
Mas
a lembrança não podia ser desfeita tão facilmente. Ele havia servido ao Grande
Khan como erudito, emissário e até cartógrafo, mapeando os muitos reinos que
este conquistara. Seu
pai voltou a falar: ninguém
jamais deve saber o que nós descobrimos..., é
uma coisa amaldiçoada. Marco
fez um aceno positivo de cabeça e não comentou sobre o que desenhara. Apenas
sussurrou: Città dei
Morti. A fisionomia de seu pai, já pálida, empalideceu ainda mais. Porém,
Marco sabia que não era só a praga que amedrontava seu pai. Jure para mim, Marco,
insistiu ele. Marco ergueu o olhar
para o rosto enrugado do pai. Naqueles quatro últimos meses, ele havia
envelhecido tanto quanto durante as décadas
passadas com o Khan em Shangdu. Jura
para mim, pelo abençoado espírito da tua
mãe, que jamais voltarás a
falar sobre o que nós descobrimos e fizemos. Marco
hesitou. Uma mão segurou o seu ombro, apertando até ao
osso. Jura para mim, meu filho, para o
seu próprio bem. Ele
reconheceu o terror reflectido
nos olhos do pai, iluminados pelo fogo..., e a
súplica. Marco não pôde recusar. Eu
guardarei segredo,
prometeu por fim. Até ao meu leito de morte e além. É o que eu juro, meu pai. O tio de Marco finalmente se juntou a eles, ouvindo por acaso o
juramento do rapaz». In James Rollins, A Herança de Judas, 2007, Bertrand
Editora, 2018, ISBN 978-972-252-977-8.
Cortesia de BertrandE/JDACT