jdact
Milão. Corte Vecchia. 7 de Fevereiro de
1496
«(…) Pelo canto do olho, Leonardo
seguia preocupado os movimentos de Gian Giacomo, o seu aprendiz de 15 anos, a quem,
contudo, chamava Salai, nome de um diabo do Morgante de Pulci. Notara que
o rapaz voltara com um cartucho sujo e um tanto húmido na mão, que depositara sobre
a mesa junto ao livro de Luca Pacioli. Depois fora-se sentar no banco atrás de
si, e tornara-se impossível continuar a espiá-lo disfarçadamente. Até breve, mestre
Leonardo!, despediu-se Cardano. O artista acompanhou-o à porta, no piso térreo:
até breve. Depois voltou ao piso de cima. Salai continuava ali, encolhido no banco,
de rosto pálido como se, pelo caminho, tivesse encontrado Belzebu em pessoa. Tremia,
até. Leonardo correu para o cartucho ensanguentado depositado sobre a mesa pelo
seu assistente. Abriu-o, viu o que estava lá dentro e deu um salto para trás, enojado.
Uma mão humana, cortada com um golpe preciso à altura do pulso. E o sangue era
fresco.
Enlouqueceste?, gritou, dirigindo-se
a Salai, que levantou para ele um olhar que parecia implorar piedade. Sei que és
ladrão e reincidente, mas que te dê agora para roubar ao próximo até pedaços de
membros... Desde o dia em que o pai, um pobre operário da Brianza, lho
oferecera, digamos assim, cinco anos antes, que Gian Giacomo revelara este defeito:
era um ladrão inveterado. Não por necessidade, porque Leonardo gostava dele como
de um filho e gastava mais com ele do que consigo mesmo, mas por uma espécie de
doença. Roubava dinheiro, jóias, objectos mais ou menos preciosos de todo o tipo,
até os caríssimos pigmentos de azul-ultramar, oito ducados a onça, a renda de um
ano no Borghetto. Era mais forte do que ele, não conseguia refrear-se, era como
se tivesse de compensar o facto de ter sido abandonado pelos pais aos 10 anos, como
se a própria natureza estivesse em dívida para com ele e todos os outros seres humanos,
sem distinção de classe, sexo ou idade, não fossem mais do que os titulares daquela
dívida imensa. Leonardo afeiçoara-se a ele até de mais: no rapazito, que considerava
lindíssimo, revia-se a si próprio adolescente, os mesmos caracóis dourados, o
mesmo olhar atrevido e impertinente de quando ele, mais ou menos com a mesma idade,
posara para o David do seu mestre florentino, Verrocchio, e fora imortalizado naquela
estátua em toda a sua inconsciente, e melancólica, desfaçatez de então. Por outro
lado, até isto tinham em comum, o terem sofrido um abandono precoce. Mas, isto é
certo, haviam desenvolvido modos opostos de se compensarem: Gian Giacomo roubava
tudo o que podia, já Leonardo tudo o que gostaria de roubar à mãe natureza eram
os seus infinitos segredos. Então? Ficaste mudo?
Salai começou a balbuciar imprecações
no dialecto da Brianza. Quando o seu elóquio se fez compreensível, a Leonardo pareceu-lhe
perceber o que se segue: que o rapaz, ao anoitecer, ia a passar pela catedral
debaixo do zimbório de construção recente, aquele para o qual também Leonardo apresentara
um projecto que, contudo, fora chumbado; debaixo dos andaimes ainda montados daquela
parte da igreja em construção ouvira um grito aterrador que vinha do alto; os operários
já deviam ter saído, por isso, já não deveria estar ali ninguém; parara a olhar
para cima, mas na penumbra do crepúsculo não conseguira distinguir silhuetas
humanas; logo a seguir, à sua frente, vira a coisa cair, ouvira um baque, inclinara-se
sobre o objecto acabado de chover do alto: era a mão decepada; apanhara-a, embrulhara-a
em papel, enfiara-a na bolsa e desatara a correr como um louco na direcção da Corte
Vecchia. E era tudo. Que não lhe perguntasse porque se comportara daquela forma,
que não parara para pensar, simplesmente fora um gesto espontâneo, o embrulhar a
mão e levá-la para casa. Lava-a!, intimou-o o mestre. Como?
É um sinal celeste, o corte da mão
é a pena clássica dos ladrões. Esta é a mão direita, por isso, o seu dono deverá
ter roubado algo muito precioso. Aconteceu-te para que saibas qual é o teu destino
se não deixares de roubar a torto-e-a-direito. Estás à espera de quê? Eu disse-te
para a lavares». In Francesco Fioretti, A Biblioteca Secreta de Leonardo, 2018, Marcador
Editora, Editorial Presença, 2019, ISBN 978-989-754-394-4.
Cortesia de MarcadorE/EPresença/JDACT