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A
Maria Lionça
«(…)
Foi preciso que o Lourenço Ruivo acabasse a militança e voltasse a Galafura com
a mão mais apurada para apertar a dela sob a estola. O padre Jaime, o prior de
então, abençoou-os como se fossem filhos, E Galafura, depois do arroz doce,
pôs-se confiada à espera da felicidade futura do casal. Esquecidos das manhas e
artimanhas da vida, todos sonhavam para os dois a ventura que não tinham tido.
Só o destino, fiel às misérias do mundo, sabia que fora reservado à Maria
Lionça um papel mais significativo: ser ali a expressão humana dum sofrimento
levado aos confins do possível. Torná-la imune à desgraça seria desenraizá-la
do torrão nativo. O polimento do Ruivo, em que a aldeia pusera tantas
esperanças, delira-lhe apenas os calos gerados pelo rabo do enxadão. Não fizera
dele o companheiro que a rapariga merecia. Engravatado aos domingos e de costas
direitas o resto da semana, ao fim dos nove meses sacramentais, quando o Pedro
nasceu, gordo, caladão, rosado, em vez de tirar daquela presença ânimo para se
atirar às eiras, acovardou-se de uma boca a mais na casa, empenhou-se e partiu
para o Brasil.
A
Maria Lionça, essa, ficou. Como todas as mulheres da montanha, que no meio do
gosto do amor enviuvam com os homens vivos do outro lado do mar, também ela
teria de sofrer a mesma separação expiatória, a pagar os juros da passagem anos
a fio, numa esperança continuamente renovada e desiludida na loja da
Purificação, que distribuía o correio com a inconsciente arbitrariedade dum
jogador a repartir as cartas dum baralho. O teu homem tem-te escrito, Maria?,
perguntava o prior de Páscoa a Páscoa. Ele não, senhor. Há quinze anos...
Não
acrescentava a mínima queixa à resposta. Fiel ao amor jurado, deixava que todos
os encantos lhe mirrassem no corpo, numa resignação digna e discreta. Com o
filho sempre agarrado às saias, como um permanente sinal de que já pagara à
vida o seu tributo de mulher, mourejava de sol a sol para manter as courelas
fofas e gordas. Depositária do pobre património do casal, queria conservá-lo
intacto e granjeado. Se o outro parceiro desertara, mais uma razão para se
manter firme e corajosa ao leme do pequeno barco. Nada, Maria? O prior já nem
se atrevia a alargar a pergunta. Nada. Respondia sem revolta ou renúncia na
voz. Objectivava a situação, lealmente. O que sentia por dentro, era o segredo
da sua serenidade. Até que um dia o Ruivo deu finalmente notícias. Regressava.
E Galafura solidária com a grandeza humana da Maria Lionça, dispôs-se a
esquecer todas as ofensas e a receber festivamente a ovelha desgarrada.
Quem
representava esse perdão colectivo e essa saúde da alma da terra era o Pedro, o
filho, que ao lado da mãe, na estação de Gouvinhas, deixava a imaginação correr
desenfreada pela linha fora até se perder nos últimos degraus da escada fugidia
feita de aço e sulipas. Infelizmente, o comboio que surgiu ao longe, avançou e
passou junto dele a travar o passo, trazia dentro uma desilusão. O pai
pareceu-lhe uma sombra esbatida da imagem recortada que sonhara. Seu moço está
mesmo um homem. A voz rouca e dolente foi apenas a confirmação duma ruína que
se lhe estampava no rosto esquelético, cor de palha. O Ruivo que ficara em
Galafura, na caução dum retrato em corpo inteiro, era a saúde personificada. E
o Ruivo que, escanchado sobre a cavalgadura que o conduzia, respirava, à
sobreposse, só abstractamente se identificava com o original. Talvez para
justificar essa desfiguração, culpado diante da mulher, do filho e dos montes
eternamente arejados e limpos da Mantelinha, o renegado confessou tudo. Vinha
doente e desenganado. Males ruins... Já lhe custava engolir. E aquela abafação
a apertar, a apertar... Mas nada de aflições. Voltava só para morrer. No
hospital da Vila os doutores ainda lhe fizeram um furo no pescoço para o
aliviar do garrote. Mais uns contos de réis, mas paciência. Galafura, na pessoa
da Maria Lionça, se não podia apertar nos braços generosos um corpo comido dos
vícios do mundo, queria que ele respirasse ao menos livremente o seu ar puro». In
Miguel Torga, Os Contos da Montanha, Edições Dom Quixote, Coimbra, 1999, ISBN
978-972-201-651-3.
Cortesia
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