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O
Desespero
«(…) (Devia ajudá-la correr e ajudá-la mas deixo-me estar quieta vendo-a com
prazer oscilar. Agora agarrada à
árvore quase que não a distingo. Há quantos anos desejava eu isto, ou terei na
verdade pena?) Levantou a cabeça, encostou a cara ao tronco rugoso. Por entre
as folhas, o céu estava negro, sem um ponto de luz, apenas negro, noite. E uma
sensação aguda de náusea acometeu-a bruscamente. Sentiu girar o mundo à sua
roda e ela nesse mundo girando vezes consecutivas. Agarra-se desesperada ao
tronco, depois pouco a pouco vai serenando e fica a sede, uma maldita sede que
lhe cola a garganta, os olhos, que lhe engrossa a língua; uma maldita
necessidade: uma sede monstruosa. Vómitos secos, fundos, fazem-na curvar, os
cabelos tombando-lhe sobre o rosto contraído e branco. (Há quantos anos lhe
conheço eu estes vómitos! Quando a levar para casa estará exausta e depois
dormirá horas e horas.) O vulto move-se depressa, ouvem-se-lhe os passos leves
sobre a terra seca, gretada. Ela, pensa, tem vontade de fugir. (Será ódio?) mas
bem sabe, que se lhe apoiará ao ombro, que se deixará despir e que lhe pedirá,
que lhe rogará o sono e o apaziguamento. Depois não se lembrará de nada.
(Ponho-lhe o casaco nos ombros, passo-lhe o braço sob as axilas e arrasto-a em
silêncio para casa, a casa que já se vê ao longe por entre as árvores do parque.
Ela olha-me de vez em quando. Penso que chego a ter pena, já nada lhe resta.
Está velha. Velha, exactamente como eu.)
A
Memória
Não é porque tente desculpá-lo, agora morto, mas
sim porque realmente está convencida de que ele a amava. A amava quando morreu.
Aquele martírio de noites em branco, deitada, a cabeça escondida nos braços, a
diluir-se-lhe na memória: e agora, deitada também, só, a camisa a tapar-lhe os
pés, é como se o esperasse ainda do mesmo modo, ou fosse correr para a rua ao
seu encontro. Raivosa. Não é porque tente desculpá-lo, agora morto, mas sim
porque o recordar-lhe os gestos ou o tom de voz lhe toma toda a memória:
somente isso. Não, somente isso. A camisa até aos pés, a cabeça na almofada
dele. E não porque tente desculpá-lo, agora morto, mas sim porque existe a
almofada. Tentem compreender, existe a almofada e o cachimbo na mesa pequena
junto ao cadeirão de couro negro e os livros inclinados como ele os colocou na
estante, aquele sobre a mesa-de-cabeceira e o ruído dos seus passos em toda a
casa. Continua sem desviar os olhos da dobra do lençol inútil no vazio a seu
lado, como se algo ali estivesse amputado e ela o soubesse quase calma, as mãos paralisadas
sobre o ventre. Não é porque tente desculpá-lo, agora morto, mas sim porque se
convenceu que ele a amara. Os olhos fecham-se-lhe como se tivesse sono e o que
era dantes um esforço de vontade maior na espera é agora uma tentativa vã de
segurar o sono e não examinar o silêncio. No fundo quem sabe se realmente a examinar
o silêncio, como se ao longe conseguisse distinguir o abrir da porta da casa ou
mesmo o elevador, o chiar contínuo do elevador e o seu brusco parar, o ruído
brusco da máquina que estaca automaticamente. Não... tentem compreender, não é
que queira desculpá-lo, agora morto, mas sim porque este silêncio, estas noites
em branco sem esperança, são afinal bem piores do que as outras. As que ele lhe
impusera tornaram-se brandas, diluídas, e se as lembra é com saudade; mesmo a
cabeça entre os braços e até as lágrimas prefere a esta dor de olhos duros,
fixos na dobra do lençol, olhos crispados, tão secos que os sente salientes,
raiados.
E a camisa puxada abaixo dos pés, como se o esperasse ainda.
Raivosa. Quase nua no fim da noite, quase nua à medida que a madrugada absorvia
o calor ou intensificava o frio, a camisa a cobrir-lhe o corpo estendido, de
bruços ou atenta, inclinada e só, já de manhã a camisa a cobrir-lhe os pés. Não
é porque tente desculpá-lo, agora morto, acreditem, mas apenas porque está
convencida que ele, a amava quando morreu, mesmo até durante a doença enquanto
o acariciava a disfarçar a verdade, mesmo antes,
o antes que agora não recorda com a memória repleta dos seus gestos, do tom da
sua voz de sempre, nem de todos os seus gestos. Não, não é porque o desculpe,
agora morto; reparem-lhe na expressão quase calma, as mãos sobre o ventre, os
olhos na dobra bordada do lençol, metade inútil, os olhos raiados como se
bebesse, ou então fechados como se dormisse. Inútil. A memória conduzida,
inconscientemente conduzida. E não porque tente desculpá-lo, agora morto». In Maria
Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América, colecção
Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.
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