sexta-feira, 19 de abril de 2019

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «O vulto move-se depressa, ouvem-se-lhe os passos leves sobre a terra seca, gretada. Ela, pensa, tem vontade de fugir. (Será ódio?) mas bem sabe, que se lhe apoiará ao ombro, que se deixará despir…»

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O Desespero
«(…) (Devia ajudá-la correr e ajudá-la mas deixo-me estar quieta vendo-a com prazer oscilar. Agora agarrada à árvore quase que não a distingo. Há quantos anos desejava eu isto, ou terei na verdade pena?) Levantou a cabeça, encostou a cara ao tronco rugoso. Por entre as folhas, o céu estava negro, sem um ponto de luz, apenas negro, noite. E uma sensação aguda de náusea acometeu-a bruscamente. Sentiu girar o mundo à sua roda e ela nesse mundo girando vezes consecutivas. Agarra-se desesperada ao tronco, depois pouco a pouco vai serenando e fica a sede, uma maldita sede que lhe cola a garganta, os olhos, que lhe engrossa a língua; uma maldita necessidade: uma sede monstruosa. Vómitos secos, fundos, fazem-na curvar, os cabelos tombando-lhe sobre o rosto contraído e branco. (Há quantos anos lhe conheço eu estes vómitos! Quando a levar para casa estará exausta e depois dormirá horas e horas.) O vulto move-se depressa, ouvem-se-lhe os passos leves sobre a terra seca, gretada. Ela, pensa, tem vontade de fugir. (Será ódio?) mas bem sabe, que se lhe apoiará ao ombro, que se deixará despir e que lhe pedirá, que lhe rogará o sono e o apaziguamento. Depois não se lembrará de nada. (Ponho-lhe o casaco nos ombros, passo-lhe o braço sob as axilas e arrasto-a em silêncio para casa, a casa que já se vê ao longe por entre as árvores do parque. Ela olha-me de vez em quando. Penso que chego a ter pena, já nada lhe resta. Está velha. Velha, exactamente como eu.)

A Memória
Não é porque tente desculpá-lo, agora morto, mas sim porque realmente está convencida de que ele a amava. A amava quando morreu. Aquele martírio de noites em branco, deitada, a cabeça escondida nos braços, a diluir-se-lhe na memória: e agora, deitada também, só, a camisa a tapar-lhe os pés, é como se o esperasse ainda do mesmo modo, ou fosse correr para a rua ao seu encontro. Raivosa. Não é porque tente desculpá-lo, agora morto, mas sim porque o recordar-lhe os gestos ou o tom de voz lhe toma toda a memória: somente isso. Não, somente isso. A camisa até aos pés, a cabeça na almofada dele. E não porque tente desculpá-lo, agora morto, mas sim porque existe a almofada. Tentem compreender, existe a almofada e o cachimbo na mesa pequena junto ao cadeirão de couro negro e os livros inclinados como ele os colocou na estante, aquele sobre a mesa-de-cabeceira e o ruído dos seus passos em toda a casa. Continua sem desviar os olhos da dobra do lençol inútil no vazio a seu lado, como se algo ali estivesse amputado e ela o soubesse quase calma, as mãos paralisadas sobre o ventre. Não é porque tente desculpá-lo, agora morto, mas sim porque se convenceu que ele a amara. Os olhos fecham-se-lhe como se tivesse sono e o que era dantes um esforço de vontade maior na espera é agora uma tentativa vã de segurar o sono e não examinar o silêncio. No fundo quem sabe se realmente a examinar o silêncio, como se ao longe conseguisse distinguir o abrir da porta da casa ou mesmo o elevador, o chiar contínuo do elevador e o seu brusco parar, o ruído brusco da máquina que estaca automaticamente. Não... tentem compreender, não é que queira desculpá-lo, agora morto, mas sim porque este silêncio, estas noites em branco sem esperança, são afinal bem piores do que as outras. As que ele lhe impusera tornaram-se brandas, diluídas, e se as lembra é com saudade; mesmo a cabeça entre os braços e até as lágrimas prefere a esta dor de olhos duros, fixos na dobra do lençol, olhos crispados, tão secos que os sente salientes, raiados.
E a camisa puxada abaixo dos pés, como se o esperasse ainda. Raivosa. Quase nua no fim da noite, quase nua à medida que a madrugada absorvia o calor ou intensificava o frio, a camisa a cobrir-lhe o corpo estendido, de bruços ou atenta, inclinada e só, já de manhã a camisa a cobrir-lhe os pés. Não é porque tente desculpá-lo, agora morto, acreditem, mas apenas porque está convencida que ele, a amava quando morreu, mesmo até durante a doença enquanto o acariciava a disfarçar a verdade, mesmo antes, o antes que agora não recorda com a memória repleta dos seus gestos, do tom da sua voz de sempre, nem de todos os seus gestos. Não, não é porque o desculpe, agora morto; reparem-lhe na expressão quase calma, as mãos sobre o ventre, os olhos na dobra bordada do lençol, metade inútil, os olhos raiados como se bebesse, ou então fechados como se dormisse. Inútil. A memória conduzida, inconscientemente conduzida. E não porque tente desculpá-lo, agora morto». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América, colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT