terça-feira, 30 de abril de 2019

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «Os mouros pediram ajuda aos do Gharb, os territórios a sul do Tejo, começou Julião. Konrad e os outros trocaram olhares assustados. As nossas sentinelas descobriram um pequeno barco…»

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«(…) Ainda assim, geravam-se conflitos, alguns graves, que resultavam em mortes, quando os cruzados se apoderavam de galinhas, porcos ou cabras, saqueavam pomares e hortas e, muitas vezes, violavam mulheres. Num fim de tarde, Konrad, Johann e os seus dois amigos foram até ao rio, onde se lavaram e pescaram. Konrad observava o irmão e deu-se consigo a pensar que, pelo menos para o rapaz, já a viagem compensara. O moço perdera a palidez e os seus ombros tinham alargado. Para não falar do fim do seu celibato. Por outro lado, Johann estava cada vez mais ligado a Ausenda, o que não agradava ao mais velho. Chegaram ao acampamento cheios de peixe para fritar e onde Ausenda já os esperava com pão fresco. No fim da refeição, deleitavam-se com uvas-passas à luz das fogueiras, quando Julião e Tomé se lhes juntaram. Os quatro alemães estavam ansiosos por falar com estes dois, pois tinham ouvido dizer que as tropas portuguesas, que controlavam a margem sul, haviam, na noite anterior, atacado um pequeno barco mouro. Os comandantes Arnulf Aarschot e Christian Gistell sabiam talvez pormenores sobre o acontecimento, mas não transmitiam grandes informações aos soldados, o que os deixava desconfiados. Os quatro esperavam, porém, que os dois portugueses, com quem tinham travado amizade, os pusessem ao correr da situação. Konrad logo lhes perguntou: o que está por detrás dessa história do barco mouro? Também ele já se ia expressando na língua latina, aprendia muito nas suas conversas com Julião, no fundo, mais depressa do que ele imaginara. Johann até dizia que os dois deveriam ter herdado uma certa habilidade para aprender idiomas estrangeiros. E ao saber que Julião trabalhara igualmente numa ferraria, Konrad perdia serões com ele. Tomé, por seu lado, aprendera a cozinhar na taberna onde trabalhara e, não raro, presenteava-os com sopas e guisados.
Os mouros pediram ajuda aos do Gharb, os territórios a sul do Tejo, começou Julião. Konrad e os outros trocaram olhares assustados. As nossas sentinelas descobriram um pequeno barco que tentava alcançar a margem sul ao abrigo da escuridão. Atacaram-no e os mouros saltaram logo para a água. Os nossos puxaram o barco para terra e encontraram lá uma carta. Johann precisava, ainda assim, de traduzir parte da informação, principalmente a Gunther que sentia dificuldades em entender os portugueses. Julião acrescentou depois: na carta, os daqui pediam ajuda ao rei de Évora, de seu nome Abu Muhammad Ibn Wazir. Johann desabafou: Deus nos valha! Esse Ibn Wazir é poderoso? Para quê a preocupação?, retorquiu Gunther, antes que Julião pudesse responder. Os portugueses não apanharam a carta? El-rei e os seus fidalgos, replicou Tomé, pensam que os mouros enviaram várias cópias, para terem a certeza de que pelo menos uma atingiria o seu destino. Naturalmente, concordou Konrad. É esse o procedimento habitual em situações semelhantes. Temos que contar que esse rei de Évora receba o pedido de ajuda. Então, o melhor é fugirmos enquanto é tempo, opinou Hadwig.
Calma, retorquiu Julião. Lisbona já pertenceu ao reino mouro de uma cidade que fica a alguns dias de marcha, para nascente, chamada Batalós, ou coisa parecida. Mas há muitos anos que se tornou independente. Não há portanto grandes amizades entre o alcaide e esse Ibn Wazir ou qualquer outro rei infiel. Mas os infiéis não se quererão ajudar mutuamente?, inquiriu Hadwig. Provavelmente não, respondeu Tomé. El-rei Afonso selou amizade com um tal de Ibn Qasi, um muladi. E o que vem a ser isso de muladi?, quis saber Gunther. Assim se chama um cristão convertido ao Islão. Aqui nesta terra há traidores desses?, admirou-se o ruivo. Que haja, retorquiu Julião, encolhendo os ombros. Estes moçárabes podem ser cristãos, mas não são como nós, mais parecem mouros, até a linguagem deles entendem. E esse Ibn Qasi é uma espécie de chefe religioso, que mantém o Gharb sob a sua influência. Diz-se que o rei de Évora é seu discípulo». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT