jdact
A
descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…)
Adivinhem quem aí vem, disse eu. Tia Ester afastou-me
ligeiramente com o cotovelo e espreitou para fora. Oh, Senhor! Dona Meneses.
Mais trabalho para a Mira, resmoneou. Vê se não ficas aqui especado a olhar
para ela, disse-me, apertando-me a mão. Como resposta, fitei-a trocando os
olhos. A carruagem suspendeu a carreira e ouviu-se a porta guinchar nos gonzos.
Ouviu-se o ruído surdo dos passos de dona Meneses na Rua da Sinagoga em
direcção à salinha de minha mãe. Mal entrou em casa desatou a descrever num
falso tom lírico a qualidade do tecido que tinha trazido. A sua voz
transformou-se num murmúrio abafado quando minha mãe fechou a porta do quarto. Tia
Ester inclinou-se para nós, como quem vai confidenciar um segredo e disse: só
por milagre é que Mira pode tornar aquele horrível veludo cor de pulga em
alguma coisa de apresentável! E avançando para a lareira, trouxe para a mesa o
nosso pão de challa, utilizando uma pega de linho. Sempre dá para
pagarmos o que devemos, disse eu. Isso é. E com a seca... É o demónio!,
exclamou subitamente frei Carlos numa voz de advertência. Isso não, dona
Meneses pode não ser afável, mas também não se pode dizer que pertença ao Outro
Lado, repliquei.
O padre contraiu os olhos e fitou-me. A língua dardejou
entre os seus lábios espessos e moles: não falo dela, tolo! É o demónio que
está por trás da peste e da seca! Você saiu-me um bom lunático!, disse-lhe tia
Ester em hebreu, com aquele olhar de desdém capaz de gelar a água do banho, E
veja se fala baixo, que não queremos espantá-la! Os sinos de São Pedro
começaram a tocar as terças. Frei Carlos murmurou qualquer coisa para si
próprio, como cedendo ao apelo da fé, pronunciou uma rápida acção de graças e
serviu-se de um pedaço de pão quente com os seus dedos roliços. Num tom de
desaprovação, prosseguiu, falando na língua sagrada, de modo que Judas não pudesse compreender: quer
dizer, cara Ester, que o demónio não existe? O que quero dizer é que se volta a
assustar o meu sobrinhito com os seus disparates..., e neste ponto tia Ester
retirou da lareira o atiçador e apontou a sua ponta incandescente ao nariz
carnudo do padre..., hei-de fazer com que encontre o seu salvador cristão mais
cedo do que contava! Vá assustar outro!
A tua tia sempre teve jeito para ameaças, sussurrou-me frei
Carlos com um sorriso maldoso. Lembras-te do dia em que te levaram à força para
te baptizarem na Sé? Lançou-lhes pragas em sete línguas diferentes... Hebreu,
persa, árabe, português... Lembramos, lembramos, interrompi, erguendo a mão num
gesto de desaprovação, tentando poupar-nos à evocação. Tarde de mais. Os olhos
de tia Ester tinham-se tornado distantes e opacos, mergulhados numa paisagem
interior. A sua mão deslizara sob o lenço carmesim e traçava o contorno da
cicatriz cruciforme que lhe tinha sido imposta naquela amaldiçoada manhã do
nosso baptismo forçado. Nessa ocasião, mais que nenhuma outra, tinha resistido
aos beleguins mandados pelo rei para arrastarem os judeus até à Sé. Um dos
guardas, querendo dá-la como exemplo, atirou-a ao chão e prendeu-lhe as mãos e
os pés ao empedrado da Rua de São Pedro. Um frade dominicano empunhando um
ferro incandescente tinha então gravado uma cruz na sua fronte, enquanto
gritava, para que todos pudessem ouvir: eu te abençoo com o signo de Deus,
Nosso Senhor! A mim, por meu turno, as crianças cristãs cobriram-me de sangue
de porco e de serrim durante o caminho da cerimónia do baptismo até minha casa.
Mas não podiam adivinhar a dádiva que me fizeram: esta humilhação abrasadora
mereceu-me o olhar misericordioso do Senhor e tive então a primeira das minhas
visões.
Este acontecimento maravilhoso ocorreu quando Farid me avistou no
pátio. Rubro de vergonha, fugi dele. Assim que atingi a porta da cozinha,
porém, o pressentimento de que um par de olhos me observava obrigou-me a parar.
Quando me voltei, avistei uma luz branca no céu, ao longe, por cima do castelo
mourisco. À medida que se aproximava, brotavam-lhe asas e vi então
que aquela luminescência era um ovo etéreo. Uma garça resplandecente cor de
rubi e negra e branca tomou forma e ao voar sobre a Judiaria Pequena o vento
causado pelo bater das suas asas soprava impetuoso em torno a mim. Quando me
olhei, o sangue e o serrim tinham desaparecido.
Meu tio disse-me que Deus me mostrara a minha pureza intocada e me
revelara que o labéu cristão não passava de uma ilusão. Eu respondi: não era Deus, era só uma ave. Não,
Berequias, respondeu. Deus aparece a
cada um de nós sob a forma com que nós melhor O podemos apreender. Para ti,
nesse momento, era uma garça. Para outro, pode surgir-lhe como uma flor ou
mesmo uma brisa». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa,
1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
Cortesia
de QuetzalE/JDACT