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A Mãe
«(…)
Toda de preto, como ficará toda de
preto? A respiração compassada, ruidosa, atravessava o corredor e invadia a
sala. Toda de preto, como será? Apoiei-me ao cadeirão já velho e deixei-me
escorregar. Fiquei a olhá-la: os cabelos despenteados marcando-lhe a cor
esverdeada do rosto, as mãos ossudas suspensas perto das coxas cobertas pela
saia verde e branca de pequeno quadrados a acentuar-lhe mais o inchaço das
pernas. Apeteceu-me agarrar-lhe um dos braços, afagar-lhe um dos braços ou
apenas encostar a cabeça nos seus braços cansados. Porquê de preto?, toda de
preto? A respiração pegava-se a nós: regular, constante, atravessava o corredor
e aderia aos nossos nervos, ameaçadora: sempre entre o silêncio total e o
grito, uma respiração sofredora, que nos obrigava a dar-lhe toda a atenção, a
detestá-la mas a seguir-lhe os contornos; uns estranhos contornos, como se
fosse visível, às vezes até em casa me parece ouvi-la e paro suspensa o que
estou a fazer, ou o que estou a dizer. Acendi um cigarro e continuei a olhá-la:
macilenta, repleta de uma dor que me
fugia também, sempre pronta a correr para o quarto onde a respiração ofegante
tomava conta de tudo, através dos móveis, a escapar-se até, primeiro pela
frincha entreaberta da janela e depois pelas frinchas mais estreitas da
persiana. Moveu as pernas inchadas pelas noites inteiras de pé sem dormir e
sentou-se curvada no sofá. Porquê toda de preto? A respiração, lá dentro,
acelerava-se para voltar à regularidade pastosa de sempre, talvez até um pouco
mais lenta, invadindo a sala, a tropeçar pelo corredor, direita a nós,
vigilante, como que a espiar-nos a mais pequena distracção. Deixei a cabeça
apoiada ao espaldar mole do maple e movi as mãos nos joelhos imaginando o que
diriam se ela não se vestisse toda de preto, e vi-lhe o olhar parado, baço,
sobre mim. Sorri-lhe, sorri mais ao seu desânimo momentâneo do que à sua
coragem de mulher conformada. Ao desânimo, sim, que pertence à mulher nova que
ainda existe nela e sorri, mansamente, quase sem entreabrir os lábios,
sorri-lhe como que para abrandar a morte em que se envolve dia após dia, sem
qualquer remédio, já saturada mas nunca revoltada, e é isso que me retrai
quando a vejo mexer-se com dificuldade à volta da cama a secar-lhe o suor com
as toalhas felpudas ou pó de talco. A virá-lo, um peso morto, a dar-lhe de
comer, a lavá-lo, a escutar-lhe a respiração, sem jamais se revoltar, e é isso
que me retrai, que me é estranho. Como agora me retraio perante a cor que não
devia pôr, que precisamente ela não devia
pôr nunca. Aliso a saia, os cabelos. Parece descansar fixando o cigarro que lhe
arde entre os dedos, mas não, escuta apenas, totalmente atenta à respiração
talvez mais ofegante que invade a casa de uma ponta à outra, que cresce, como
que incha, enorme, até ao tecto, que penetra em tudo, que nos entontece».
In
Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América,
colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.
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