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«(…) A sede. A garganta encortiçada, a língua
grossa e a sede a atravessar-lhe o corpo, célere. Ritmada, ritmada, os dedos no
tecido aveludado do casaco, os dedos como que ali postos sem vontade, como que
mortos... Ambos meu amor como mortos por dentro..., e não pudesse eu recordar
quanto me querias então e não me tivesses beijado daquele modo como ainda agora
sinto e entreabro as coxas e me fosses ter..., enrolada na cama, nos lençóis,
uma mancha mais clara no escuro do quarto, os seios abandonados, inúteis, as
pernas, os braços a acompanharem o frio da solidão, firmes na sua urgência de
refúgio. E a mão amparava-a ao de leve, mecanicamente, quando ela tropeçava
cheia de frio, a tremer como quando estava na cama à sua espera ou a seu lado a
vê-lo dormir. Sôfrega, sôfrega, a boca a percorrer-lhe o calor. A sede a rasgar-lhe
os olhos, a garganta, a pele, toda a pele do corpo. A sede como um vício. E não
me sabes explicar? Talvez não o cansaço nem o tempo, mas qualquer outra
coisa...? Só queria chegar a casa, encostar-se a uma parede, escorregar,
deslizar, perder-se em si, como se tivesse muito sono, um sono desesperado, do
tamanho igual a esta sede e a esta memória ao peso morto da tua mão ao peso do
meu ombro que se desfez intacto sob a memória da tua mão antigamente... E
quando ele abriu a porta precipitou-se para dentro a esconder-se no fundo do
cadeirão verde, de veludo verde, a coser
a sede na espera, na tentativa de a repelir, de a dominar. A sede exacta, exacta,
ritmada, mansa, contínua, ritmada, móvel, exacta, exacta. “Já nada mais senão
este alívio nem a tua presença a meu lado a percorreres-me os cabelos melhor os
teus dedos leves a percorrerem-me os cabelos mecanicamente. Senão este alívio
este apaziguamento profundo sereno onde me encontro este fechar os olhos o
corpo lasso lasso e brando mole distendido como é tarde meu amor. E pousou o
copo com suavidade no tampo da mesa, mesmo na beira da mesa, como se não visse,
de maneira indecisa. Pousou o copo e ficou-se a olhá-lo. Brilhante o vidro
transparente, brilhante à luz baça da sala. Ficou-se a olhar o resto do líquido
amarelado no fundo do copo até ele se aquietar por completo.
A
Morte
Abana a cabeça: não se lembra. Um homem de bata
branca pergunta-lhe o nome e ela não se lembra. Olha, tenta abrir mais os olhos
e é como se os tivesse colados, as pálpebras pregadas, cosidas. Perguntam-lhe
se tem sono, pensa responder não, mas os lábios mantêm-se-lhe imóveis,
todavia brandos e de uma brancura tal que parece tê-los maquilhado,
exoticamente maquilhado: brandos. A verdade será não ter sono, antes como se se
afundasse lentamente em si própria numa suave vertigem absorvente. Quer contar
isso e não sabe, como não sabe a idade: perguntam-lhe a idade, o nome,
perguntam-lhe se tem sono. Não tem sono. Tenta erguer a cabeça, mover o
pescoço, tenta mesmo mover os braços, os dedos, o pescoço, os braços, os dedos,
o pescoço, os braços, as pernas, os dedos. Pouco a pouco as coisas estão-se
desvanecendo à sua roda. O homem de bata branca é já apenas uma mancha, o ruído
que se esgueira pela frincha entreaberta da porta, somente um som uniforme,
baço, indeciso. E um peso terrível a desabar sobre si. Custa-lhe respirar,
entreabre a boca. O homem de bata
branca pensa que ela vai falar, mas ela desaparece pouco a pouco dentro de si
própria, molemente, o corpo todo molemente dentro do próprio corpo. Há quantas
horas estará ali? (O homem de bata branca fez a pergunta e o tempo é aquele que
está detido no trajecto que vai do papel à caneta que ele ergue à altura do
ombro.) A pergunta é: tem sono? Não: já disse não ter sono. Ela não reconhece o
seu próprio silêncio e diz: não tenho sono, pensando mover a boca cerrada,
aberta apenas o suficiente para respirar melhor. Empurram-na depressa. Quer
saber de quem são as mãos que lhe roçam os cabelos; as rodas de borracha
deslizam silenciosas no corredor comprido. Sente as pernas dormentes e um
grande desespero sem causa. De que não sabe a causa. Não se lembra, não tem
qualquer memória, e aquele grande desespero absurdo, incongruente a encher-lhe
os olhos de água». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa
América, colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.
Cortesia de PEAmérica/JDACT