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«(…)
Esqueces-te de fazer esboços. Envergonhado, tirou o caderno de desenho para
fora e começou a trabalhar. O trabalho, Howard! Só o trabalho conta. Tu, agora,
és um cientista, mesmo que ignores tudo. Contenta-te em anotar e analisar; se
te deixas envolver pela magia deste país, perderás a alma. Dez raças, cem
línguas, mil cores de turbantes, uma multidão compacta de Egípcios, de Sírios,
de Arménios, de Persas, de Turcos, de Beduínos, de Judeus e de Europeus,
mulheres veladas de negro, burros carregados de luzerna ou de barro, os telhados
das casas em mau estado, atafulhados de detritos, dos cheiros de excrementos
misturados com o perfume das especiarias, solos lamacentos, pequenas lojas
abertas num lanço de parede, o fumo dos fornos ao ar livre, onde se coze a
carne e o pão, milhafres rapaces voando em redor do alimento, dentro do cesto que
as camponesas traziam à cabeça, um sonho louco, grandioso, inumano: assim lhe
apareceu o Cairo, a mãe do mundo. Ficaram num hotel do centro da cidade que se
parecia, traço a traço, com um estabelecimento londrino; o professor encomendou
sopa e porrídge para o jantar. Esgotado, encantado, Howard adormeceu,
escutando as vozes ininterruptas da grande cidade. Às cinco da manhã, Newberry
sacudiu-o sem contemplação. A pé, Howard! Temos um encontro. Tão cedo?
O
funcionário que temos de seduzir, trabalha, à segunda-feira, das seis às onze;
se perdermos a ocasião, perdemos uma semana. Abriam os primeiros cafés; nas
ruas, quase desertas, os transeuntes pareciam cheios de frio. O ar vivo varria
as nuvens e deixava aparecer um Sol pálido, cujos primeiros raios poisavam
sobre os inúmeros minaretes: em frente da grande mesquita de Méhémet Ali, foi
rendida a guarda. Percy Newberry meteu por um beco sórdido atafulhado de
gaiolas, de restos de aves e amontoado de detritos; as casas, meio abatidas,
inclinavam-se umas para as outras, ao ponto que os moucharabiehs se
tocavam, permitindo às donas de casa trocarem confidências sem saírem. Atravessaram,
a grandes passadas, o bairro miserável, passaram em frente dos mercadores de laranjas
e de cana-de-açúcar; atrás de um sicômoro escondia-se a entrada de um palácio degradado,
que dois homens de idade guardavam. Cumprimentaram o professor, que se contentou
com um aceno de cabeça e se enfiou por uma escada, noutros tempos sumptuosa. Um
núbio, com uma vestimenta vermelha, comprida, acompanhou-os à porta de um
escritório que um dos seus compatriotas, tão musculoso como ele, vigiava. Sou o
professor Newberry. Previna Sua Excelência da minha chegada.
Sua
Excelência, um pequeno tirano de bigodes, com o rosto sacudido por tiques,
aceitou recebê-los. O seu antro estava cheio de pilhas de cadernos e de notas
administrativas, no meio dos quais pontificava como um paxá. Em virtude da
exiguidade do local, era impossível introduzir-lhe cadeiras; ficaram, pois, de pé,
em frente do funcionário. Encantado por o tornar a ver, professor. Posso
ser-lhe útil? Vossa Excelência é detentor da chave da minha salvaguarda. Que
Alá nos proteja. Quem é esse rapaz? Howard Carter, o meu novo assistente. Seja
bem-vindo ao Egipto. Howard inclinou-se desajeitadamente. Pronunciar as
palavras Vossa Excelência estava acima das suas forças; porque seria que um
sábio como Newberry perdia o seu tempo com aquele homenzinho sentencioso? A sua
família está de boa saúde, Excelência? Muito boa, professor; constato que a sua
saúde está também florescente. Menos do que a sua. Lisonjeia-me; conta voltar
ao Médio Egipto? Se agradar a Vossa Excelência. Agradava-me, professor,
agradava-me! As autorizações de estada encontram-se no cimo daquela pilha, à
sua esquerda. Gostaria tanto de as assinar e de lhas dar... Percy Newberry
empalideceu. Há perturbações na região? Não, não..., as povoações locais estão
calmas. As estradas não estão seguras? Não há nenhum acidente a lamentar. Esclareça-me,
Excelência». In Christian Jacq, L’Affaire Toutankhamon, O Caso Tutankhamon, tradução
de Maria Carlota Guerra, Bertrand Editora, 1998, ISBN 972-250-750-8.
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