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2 de Maio de 1519
Mansão de Clos Lucé, Amboise
«(…) Majestade, não perdi contra
a dificuldade dos desafios. Perdi apenas contra o tempo..., disse Leonardo,
retirando importância às notícias de Chambord. Maître, prefiro que me
chameis Francesco, respondeu o rei num acto de humildade que Leonardo soube
agradecer com o mais caloroso dos olhares. Assim seja, querido Francesco, assim
seja. E fechou os olhos. Kekko..., aproximai-vos... O ajudante aproximou-se,
veloz. Nesse breve período, Francesco Melzi esqueceu a presença do rei de
França, e o próprio Francisco I passou por cima dessa falta de formalidade. Dizei,
mestre... O que desejais?, perguntou, como se o tempo parasse apenas para
agradar ao tutor. Apenas um abraço, meu amigo. Apenas um abraço, respondeu Leonardo
com um delicado tom de voz. Quando Melzi se abalançou serenamente sobre o corpo
do mentor, criou-se tal fusão que qualquer casal de amantes teria hesitado.
Mas, longe de qualquer libido, ali respirava-se carinho, respeito, admiração e
dor, muita dor. Kekko, meu amigo. Não estejas tão triste. Leonardo tentou
apaziguar o incondicional e jovem assistente com belas palavras. Viverei sempre
que falarem de mim. Lembra-te de mim. E terminou piscando-lhe um olho carregado
de cumplicidade.
Leonardo inspirou de tal maneira
que os ali presentes souberam que não veria um novo amanhecer. Que a vida lhe
fugia. Após tanto sofrimento e tanta perseguição. E tanta mensagem em código e
tanta pincelada para a história. Leonardo da Vinci chegava ao fim. Francesco...,
amigos..., chegou a hora... Simultaneamente venerável e vulnerável, Leonardo
estava preparado para partir…, de percorrerem o caminho sem mim. Mestre!,
gritou Melzi sem reprimir um soluço. Maître… Mon père... As
palavras do rei afogaram-se não só no seu próprio mar de lágrimas, mas no
oceano onde se fundiam com as lágrimas dos outros. Chegou a hora..., de voar...
E voou. Mais alto e mais longe do
que nunca. Um voo de ida, apenas. Um voo que, mais cedo ou mais tarde, todos
faremos. Um silêncio sepulcral invadiu a sala. François Desmoulins, como se de
um fantasma se tratasse, deu meia volta e, sigilosamente, transpôs a porta que,
acto contínuo, fechou com extrema precaução. Mathurina encharcou de lágrimas o
pano, que já não enxugava líquido algum. Francisco I manteve-se em silêncio. Um
silêncio cortês e admirável. Um silêncio que dizia tudo. Francesco Melzi, Kekko,
caiu no chão, junto à cama, com o piscar de olhos cúmplice a pairar-lhe na
memória. Leonardo da Vinci conquistara o céu ancorado ao chão.
Florença. 29 de Maio de 1476. Calabouços
subterrâneos do Palazzo del Podestà
No ano de 1476 de Nosso Senhor,
uma mão trabalhava com esforço sobre a fria e húmida parede de pedra que
fechava uma das celas da prisão, nas divisões inferiores do Palazzo del
Podestà, futuro Palazzo del Bargello, situado a pouco mais de quatrocentos
metros do centro nevrálgico de Florença. Um edifício bastante reconhecível ao
longe, pois a sua torre de menagem era das mais altas da cidade. Ali residia o
magistrado governador da urbe, um estrangeiro eleito com o propósito de representar
a objectividade no exercício da justiça. Na fachada, uma inscrição alertava
para o poder de Florença:
Florença está repleta de
inimagináveis riquezas.
Proclama-se vencedora contra os
seus inimigos, tanto na guerra como nas lutas civis.
Goza do favor da Fortuna e tem
uma população poderosa.
Com sucesso, fortifica e
conquista castelos.
Reina sobre os mares e as terras
e sobre o mundo inteiro.
Sob o seu comando, toda a Toscana
transborda de felicidade.
Tal
como Roma, Florença triunfa sempre.
A mão rasgava uma e outra vez no
mesmo sentido, para que a gravura ficasse nítida e se pudesse desenvolver a
ideia seguinte. Alheio a tudo o que o rodeava, o dono dessa mão, nos seus vinte
anos, parecia aplicar a arte da docência a alunos inexistentes, em vez de
tramar um impossível plano de fuga. As linhas horizontais terminavam numa
bifurcação, e cada opção transformava-se em nova linha que voltava a
concluir-se irremediavelmente numa nova divergência. Uma ramificação pedregosa
com uma única intenção. Os companheiros de cela não sabiam distinguir o que o
dominava, a sua obstinada teimosia ou a genialidade que pouco a pouco lhe
ressumava dos poros da pele. Baccino, dias antes alfaiate e hoje também
prisioneiro, não se atreveu a perguntar. Sabia perfeitamente a resposta do
homem que tinha diante de si, a escassos metros. O silêncio. Tal era a sua
concentração. Embora também não fosse necessário pronunciar palavra alguma para
descodificar o mistério que aos poucos se espalhava pela cela de pedra. Estava
a calcular probabilidades; a calcular possíveis futuros, ter-lhe-ia respondido
o companheiro. Sabia-o bem». In Christian Gálvez, As Sombras de Leonardo
da Vinci, 2014, Clube do Autor, 2018, ISBN 978-989-724-367-7.
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