jdact e cortesia de wikipedia
«(…)
Querida
Judy Garland,
Pensei
em escrever para você porque O mágico
de Oz ainda é o meu filme favorito. Minha mãe sempre o colocava
para eu ver quando ficava doente e não ia para a escola. Ela me dava
refrigerante com cubos de gelo de plástico rosa e bolacha de canela, e V. cantava
Somewhere Over the Rainbow. Agora me dei conta de que todos conhecem o seu
rosto. Todos conhecem a sua voz. Mas nem todos sabem de onde realmente é, a não
ser dos filmes.
Penso
em V. pequena, em Dezembro, na cidade onde cresceu, perto do deserto de Mojave,
sapateando no palco do cinema do seu pai. Cantando músicas de Natal. V.
aprendeu logo que os aplausos fazem alguém se sentir amado. Penso nas noites de
Verão, quando todos iam ao teatro para aproveitar o ar-condicionado. No palco, V.
fazia a plateia esquecer por um momento as mazelas da vida. Sua mãe e seu pai
sorriam. A maior emoção deles era vê-la cantar. Depois, o filme passava como um
borrão preto e branco, e de repente tinha sono. Seu pai a levava para fora, e
era hora de voltar para casa naquele carro enorme, como um barco navegando na
superfície de asfalto escuro. V. não queria que ninguém ficasse triste, então
continuava cantando. Quando ouvia os seus pais brigando, cantava até dormir. E,
quando não estavam brigando, cantava para que rissem. Usava a sua voz para
manter a família unida. E para que V. mesma não desmoronasse.
Minha
mãe costumava cantar canções de embalar para fazer May e eu dormirmos. Ela
acariciava meu cabelo e ficava comigo até eu adormecer. Quando eu não conseguia
dormir, ela dizia para eu me imaginar numa bolha voando sobre o mar. Eu fechava
os olhos e flutuava, ouvindo as ondas. E olhava para a água lá em baixo. Quando
a bolha estourava, eu ouvia a voz dela, me envolvendo numa nova bolha. Mas,
agora, quando tento imaginar-me sobre o mar, a bolha estoura imediatamente.
Preciso abrir os olhos rápido, antes de me estatelar. Minha mãe está triste
demais para cuidar de mim. Meus pais se separaram pouco antes de May entrar no
ensino médio. Quando minha irmã morreu, quase dois anos depois, minha mãe foi
para a Califórnia.
Com
apenas meu pai e eu em casa, há ecos por toda a parte. Fico recordando momentos
em que estávamos todos juntos. Posso sentir o cheiro da carne que minha mãe
preparava para o jantar. Olho pela janela e quase me vejo com May no jardim,
colhendo ingredientes para as nossas poções mágicas. Em vez de ficar com a
minha mãe semana sim, semana não, como May e eu fazíamos depois do divórcio,
agora fico com minha tia Amy. A casa dela tem outro tipo de vazio. Não é cheia
de fantasmas. É silenciosa, com prateleiras repletas de porcelanas com estampa
de rosas e sabonetes de rosas para lavar a tristeza. Mas estão sendo guardados
para quando forem realmente necessários, acho. Nós usamos sabonetes comuns
mesmo.
Estou
olhando pela janela da casa dela, fria, em baixo de uma colcha de rosas, procurando
uma estrela. Eu gostaria que V. me pudesse dizer onde está agora. Sei que está
morta, mas acho que tem alguma coisa de nó que não desaparece simplesmente. Está
escuro lá fora. E V. está lá. Em algum lugar. Eu te deixaria entrar aqui». Beijos, Laurel
In Ava Dellaira, Cartas de Amor aos Mortos, tradução
de Alyne Azuma, Editora Seguinte (o Selo Jovem da Companhia das Letras), 2014,
ISBN 978-856-576-541-1.
Cortesia da
ESeguinte/JDACT