sábado, 13 de abril de 2019

Cartas de Amor aos Mortos. Ava Dellaira. «E, quando olhei de novo, Sky ainda me estava encarando. Os olhos dele eram como a sua voz, Kurt, uma chave que abria algo em mim»


jdact e cortesia de wikipedia

«(…)
Querido Kurt Cobain,
Hoje, no fim da aula, quando a sra. Buster pediu para entregarmos as cartas, olhei para o caderno em que tinha escrito a minha e fechei-o. Assim que o sinal tocou, recolhi o meu material e saí. Tem coisas que não posso contar p’ra ninguém além das pessoas que já não estão mais aqui. Na primeira vez que May me mostrou as suas músicas, eu estava no oitavo ano. Ela tinha acabado de entrar no ensino médio e parecia cada vez mais distante. Sinto falta dela e das histórias que costumávamos inventar. Naquela noite, no carro, éramos só nós duas de novo. Ela colocou Heart-Shaped Box, que era diferente de tudo o que eu já tinha ouvido. Quando May tirou os olhos da rua e perguntou se eu tinha gostado, foi como se tivesse aberto a porta de seu mundo e convidado para entrar. Fiz que sim. Era um mundo cheio de sentimentos para os quais eu ainda não tinha palavras. Ultimamente, tenho ouvido V. de novo. Coloco In Utero, fecho a porta e os olhos e escuto o álbum inteiro várias vezes. É difícil explicar, mas quando estou ali, ouvindo a sua voz, sinto que começo a fazer sentido.
Depois que May morreu, em Abril, foi como se a minha mente tivesse fechado. Eu não sabia responder a nenhuma das perguntas que meus pais faziam, então basicamente parei de falar por um tempo. Até que parámos de conversar, pelo menos sobre aquilo. É mentira que a dor aproxima as pessoas. Cada um de nós era uma ilha, meu pai na casa, minha mãe no apartamento para onde e tinha mudado alguns anos antes, e eu indo de um lado para o outro em silêncio, fora de órbita, incapaz de suportar os últimos meses do fundamental. No fim, meu pai isolou-se com o beasebol e voltou a trabalhar na Rhodes, uma empresa de construção, e minha mãe foi para um rancho na Califórnia dois meses depois. Talvez ela tenha ficado brava porque não contei o que aconteceu. Mas não consigo contar.
Durante aquele longo Verão tedioso, comecei a procurar na internet qualquer imagem ou texto que substituísse a versão que ficava na minha cabeça. Havia um obituário que dizia que May era amada pela família, linda e uma óptima aluna. E havia uma notícia curta, adolescente local morre tragicamente, acompanhada por uma foto de flores e outras coisas que alunos da escola dela deixaram perto da ponte, junto com a foto do anuário, na qual May estava sorrindo, com o cabelo brilhante, olhando directamente para nó. Talvez V. possa ajudar-me a encontrar outra porta para um mundo novo. Ainda não fiz nenhum amigo. Na verdade, eu praticamente não disse uma palavra nos dez dias em que estive aqui, excepto presente, na chamada. E quando perguntei à funcionária da secretaria para que sala tinha que ir. Mas tem essa garota chamada Natalie na minha aula de inglês. Ela faz desenhos, tatuagens, nos braços.
Não só os corações de sempre, mas paisagens com criaturas, garotas e árvores que parecem reais. Ela usa duas tranças que vão até à cintura e tem a pele escura, perfeita, aveludada. Os olhos dela são de cores diferentes, um é quase preto, e o outro é verde-escuro. Ela passou-me um bilhete ontem com uma carinha feliz. Talvez eu possa almoçar com ela. Na fila para comprar alguma coisa no almoço, todos parecem estar juntos. E eu imagino fazendo parte do grupo. Não queria encher o saco do meu pai pedindo dinheiro, porque ele fica meio estressado sempre que faço isso, e não posso pedir à tia Amy, porque ela acha que gosto das sanduíches. Mas comecei a juntar os trocados que encontro por aí, uma moeda de dez centavos no chão, vinte e cinco centavos da máquina de refrigerante quebrada, e ontem furtei cinquenta centavos da cómoda da tia Amy. Senti-me mal. Mas foi o suficiente para comprar bolacha.
Isso me deixou feliz. Gostei de ficar na fila. Gostei de ver que a garota na minha frente tinha cachos ruivos que, dava para notar, ela mesma fazia. E gostei do leve barulho do plástico quando abri o pacote. Gostei que cada mordida era tão crocante que lembrava algo quebrando-se. E então aconteceu o seguinte: estava comendo uma bolacha e olhando para o Sky através das folhas que caíam. Foi quando ele me viu. Estava virando para falar com alguém. E então tudo ficou em câmera lenta. Nossos olhares se encontraram por um instante, antes que o meu se desviasse. Parecia que vaga-lumes brilhavam sob minha pele. E, quando olhei de novo, Sky ainda me estava encarando. Os olhos dele eram como a sua voz, Kurt, uma chave que abria algo em mim». Beijos, Laurel

In Ava Dellaira, Cartas de Amor aos Mortos, tradução de Alyne Azuma, Editora Seguinte (o Selo Jovem da Companhia das Letras), 2014, ISBN 978-856-576-541-1.

Cortesia da ESeguinte/JDACT