jdact e cortesia de wikipedia
«(…)
Querido
Kurt Cobain,
Hoje,
no fim da aula, quando a sra. Buster pediu para entregarmos as cartas, olhei
para o caderno em que tinha escrito a minha e fechei-o. Assim que o sinal tocou,
recolhi o meu material e saí. Tem coisas que não posso contar p’ra ninguém além
das pessoas que já não estão mais aqui. Na primeira vez que May me mostrou as suas
músicas, eu estava no oitavo ano. Ela tinha acabado de entrar no ensino médio e
parecia cada vez mais distante. Sinto falta dela e das histórias que costumávamos
inventar. Naquela noite, no carro, éramos só nós duas de novo. Ela colocou Heart-Shaped
Box, que era diferente de tudo o que eu já tinha ouvido. Quando May tirou
os olhos da rua e perguntou se eu tinha gostado, foi como se tivesse aberto a
porta de seu mundo e convidado para entrar. Fiz que sim. Era um mundo cheio de
sentimentos para os quais eu ainda não tinha palavras. Ultimamente, tenho
ouvido V. de novo. Coloco In Utero,
fecho a porta e os olhos e escuto o álbum inteiro várias vezes. É difícil
explicar, mas quando estou ali, ouvindo a sua voz, sinto que começo a fazer
sentido.
Depois
que May morreu, em Abril, foi como se a minha mente tivesse fechado. Eu não
sabia responder a nenhuma das perguntas que meus pais faziam, então basicamente
parei de falar por um tempo. Até que parámos de conversar, pelo menos sobre
aquilo. É mentira que a dor aproxima as pessoas. Cada um de nós era uma ilha,
meu pai na casa, minha mãe no apartamento para onde e tinha mudado alguns anos
antes, e eu indo de um lado para o outro em silêncio, fora de órbita, incapaz
de suportar os últimos meses do fundamental. No fim, meu pai isolou-se com o beasebol
e voltou a trabalhar na Rhodes, uma empresa de construção, e minha mãe foi para
um rancho na Califórnia dois meses depois. Talvez ela tenha ficado brava porque
não contei o que aconteceu. Mas não consigo contar.
Durante
aquele longo Verão tedioso, comecei a procurar na internet qualquer imagem ou
texto que substituísse a versão que ficava na minha cabeça. Havia um obituário
que dizia que May era amada pela família, linda e uma óptima aluna. E havia uma
notícia curta, adolescente local morre tragicamente, acompanhada por uma
foto de flores e outras coisas que alunos da escola dela deixaram perto da
ponte, junto com a foto do anuário, na qual May estava sorrindo, com o cabelo
brilhante, olhando directamente para nó. Talvez V. possa ajudar-me a encontrar
outra porta para um mundo novo. Ainda não fiz nenhum amigo. Na verdade, eu
praticamente não disse uma palavra nos dez dias em que estive aqui, excepto presente,
na chamada. E quando perguntei à funcionária da secretaria para que sala tinha
que ir. Mas tem essa garota chamada Natalie na minha aula de inglês. Ela faz
desenhos, tatuagens, nos braços.
Não
só os corações de sempre, mas paisagens com criaturas, garotas e árvores que
parecem reais. Ela usa duas tranças que vão até à cintura e tem a pele escura,
perfeita, aveludada. Os olhos dela são de cores diferentes, um é quase preto, e
o outro é verde-escuro. Ela passou-me um bilhete ontem com uma carinha feliz.
Talvez eu possa almoçar com ela. Na fila para comprar alguma coisa no almoço,
todos parecem estar juntos. E eu imagino fazendo parte do grupo. Não queria
encher o saco do meu pai pedindo dinheiro, porque ele fica meio estressado
sempre que faço isso, e não posso pedir à tia Amy, porque ela acha que gosto das
sanduíches. Mas comecei a juntar os trocados que encontro por aí, uma moeda de
dez centavos no chão, vinte e cinco centavos da máquina de refrigerante
quebrada, e ontem furtei cinquenta centavos da cómoda da tia Amy. Senti-me mal.
Mas foi o suficiente para comprar bolacha.
Isso
me deixou feliz. Gostei de ficar na fila. Gostei de ver que a garota na minha
frente tinha cachos ruivos que, dava para notar, ela mesma fazia. E gostei do
leve barulho do plástico quando abri o pacote. Gostei que cada mordida era tão
crocante que lembrava algo quebrando-se. E então aconteceu o seguinte: estava
comendo uma bolacha e olhando para o Sky através das folhas que caíam. Foi
quando ele me viu. Estava virando para falar com alguém. E então tudo ficou em câmera
lenta. Nossos olhares se encontraram por um instante, antes que o meu se
desviasse. Parecia que vaga-lumes brilhavam sob minha pele. E, quando olhei de
novo, Sky ainda me estava encarando. Os olhos dele eram como a sua voz, Kurt,
uma chave que abria algo em mim». Beijos,
Laurel
In Ava Dellaira, Cartas de Amor aos Mortos, tradução
de Alyne Azuma, Editora Seguinte (o Selo Jovem da Companhia das Letras), 2014,
ISBN 978-856-576-541-1.
Cortesia da
ESeguinte/JDACT