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A
Maria Lionça
«(…)
Um mês depois estava estendido sobre a cama onde noivara, imóvel, muito
amarelo, muito seco, já com a alma a dar contas a Deus. E no dia seguinte, pela
manhã, a boca do cemitério de Galafura, tragava-lhe os ossos descarnados. Do
rescaldo dessa mortalha singular, saiu mais viva ainda a figura de Maria Lionça.
Nem o chorou fora dos limites do seu amor atraiçoado, nem se carregou dum luto
para além da melancólica negrura que lhe apertava o coração. Manteve-se na
justa expressão do sentir de Galafura, enojada e apiedada ao mesmo tempo. Digna
e discreta, enterrou-o e começou a pagar os juros da operação. A trovoada não
perturbou nem ao de leve o ritmo dos seus passos. O filho, o Pedro, é que não
resistiu ao desencanto. Envergonhado dum pai que lhe passara apenas pelos olhos
como um fantasma de podridão, e sem poder abarcar a grandeza daquela mãe que
fazia do absurdo o pão da boca, abalou para Lisboa, sem Galafura saber a quê. E
nova via-sacra começou na loja do correio.
Não
tens nada, Maria. Velha, branca, igual, a Lionça voltava pelo mesmo caminho e
sentava-se ao lume a fiar, pondo na regularidade do fio a estremada
regularidade da sua vida. E Galafura, tanto ao passar para os lameiros como na
volta, saudava respeitosamente nela uma permanência que resgatava a traição do
marido e a fraqueza do filho. Como à mimosa familiar do adro, ou à fonte
incansável do largo, assim a viam, segura e repousante no seu posto, e capaz de
todos os heroísmos dum ser humano. O tempo dera-lhes a chave daquela
existência, destinada, afinal, mais às provações do sofrimento do que ao gosto
das alegrias. Só ela os podia esclarecer e ajudar no desespero de certas horas
e situações. Movediço como a insensatez da sua idade, o filho fizera-se
marinheiro. E Galafura, humosa, enraizada no dorso da serra de S. Gunhedo,
olhava esse rebento, mergulhado em água, como um proscrito. Antes o degredo do
pai no Brasil, ao menos aproado a um chão que fazia parte da cosmogonia de
Galafura. Diluída na imensidão do mar, a imagem do rapaz perdera toda a
nitidez. E sumir-se-ia irremediavelmente na consciência da povoação, sem a
ajuda da Maria Lionça. Quando inesperadamente chegou um telegrama da capitania
de Leixões e ela partiu, é que viram todos como fora capaz, sozinha, de manter
indelével a realidade do ausente. Se se metia a caminho, se enfrentava de rosto
calmo a primeira viagem distante e o pavor da cidade, lá tinha as suas razões,
que eram necessariamente razões de Galafura.
Tal
e qual. No dia seguinte a aldeia viu com espanto e comoção que trouxera nos
braços de sessenta anos o filho morto. Deram-lho no hospital, a exalar o último
suspiro. Meteu-se então no comboio com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado
numa manta, a pedir licença a todos, que levava ali uma pessoa muito doente.
Arredavam-se logo. E assim conseguiu sentá-lo e sentar-se a seu lado. Galafura
quase que não compreendia como pudera com ele, embora fosse meão e magro. O que
é certo é que pudera, e sem lágrimas nos olhos lhe falava ternamente mal o
revisor aparecia no compartimento. Dói-te, filho? Dói-te muito? Pois dói...
Dói...
Encostava-o
ao ombro, enrolava-lhe a manta nas pernas hirtas e mostrava os bilhetes. Em
Gouvinhas apeou-se. À porta da estação, o guarda arregalou muito os olhos, mas
deixou passar. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para
dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde
nascera e o regaço eterno de sua mãe». In Miguel Torga, Os Contos da Montanha,
Edições Dom Quixote, Coimbra, 1999, ISBN 978-972-201-651-3.
Cortesia
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