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Um
Roubo
«(…)
Ele também lhe não falou. Ladrão agora duplamente culpado diante da
desaprovação dela, foi à loja buscar os precisos e desapareceu na escuridão do
quinteiro, sombra muda a esgueirar-se na sombra. O temporal bramia pela aldeia
fora. Ouvia-se a nortada a pregar nos braços dos castanheiros e as bátegas a
cair nas estrumeiras encharcadas. Um taró de repassar fragas. Faustino,
vencidos cautelosamente os cem metros da quelha em que morava, meteu-se à
serra. Apesar de o vento galego o empurrar para trás, para o frio enxuto da
casa, caminhava depressa. Uma vez que encontrara forças para tomar a única
resolução acertada, era preciso não demorar. Infelizmente, a Senhora da Saúde
não ficava logo ali. Quase no termo de Valongueiras, distava de Abaças uma boa
meia hora. Ainda por cima, caminhos maus. Ou lajes com relheiras que lembravam
rugas em coiro de atanado, ou então saibro ensopado e atoladiço. Trilhos
excomungados! Mas desembelinhava as canelas o melhor que podia, e meia hora,
que afinal queria dizer meia légua, passa depressa. É questão de um homem ir
deitando contas à vida enquanto as pernas passeiam.
Cem
mil réis, na pior das hipóteses, estavam-lhe no papo. Só muito azar. Mas não. A
Senhora da Saúde governava-se... Nem havia outra tão agenciadeira nas
redondezas... Na carvalhada da Arcã os pensamentos mudaram-lhe de rumo. A tosca
memória erguida pela morte do Joaquim Teodoro, assassinado naquele sítio,
chamou-o a uma realidade mais dura. O Joaquim Teodoro, ao cabo, era ladrão também.
Não de caminhos nem de igrejas, é certo, mas de roleta, que dá mais e sem
nenhum trabalho. Basta lume no olho e dedo. justamente o forte do Joaquim
Teodoro... Que habilidade! Isso então na vermelhinha não havia segundo! O mais
pintado entregava-lhe ali o seu e o de quem calhasse. Artes do diabo! Mas o
Videira, quando no dia da festa lhe passou para as mãos o último tostão,
jurou-lhe que no ano que vinha não vigarizava ele mais ninguém. Dito e feito. E
ali estava agora a alma do Joaquim Teodoro pintada a branco no granito, entre
línguas de fogo, de mãos erguidas a pedir um padre-nosso!
E
se ele, Faustino, tirasse o chapéu e atendesse a imploração? Um padre-nosso
antes de roubar a Senhora da Saúde, tinha a sua graça! Apesar de travado por
estes pensamentos desconsolados, caminhava depressa. E, à medida que a
carvalhada foi ficando para trás, a imagem do Joaquim Teodoro começou a
desvanecer-se. Insensivelmente, todo ele ia aderindo à realidade erma e negra
que o cercava. Também onde o raio da Santa viera fazer o pouso! Era mesmo
desafiar um homem. O pior é se... Mas não. A sorte dele havia de ser tão
caipora, que encontrasse a caixa sem um vintém? A esta íntima interrogação, os
olhos responderam-lhe bruscamente que chegara. A dois palmos do nariz viam-se
as paredes da ermida a reluzir. Embora gatuno de profissão, pois que não se
podia chamar cesteiro a quem só lá de tempos a tempos fazia um cesto por
desfastio, Faustino, mal deu de chofre com a capela, teve um baque no coração.
E parou. Nunca assaltara nenhum lugar sagrado. Sempre era roubar a Senhora da
Saúde!
Mas
a hesitação durou um minuto apenas. Molhado da cabeça aos pés, o próprio
organismo é que o impeliu para a frente, para dentro de uma casa com telhado.
Não havia tempo a perder de maneira nenhuma. Nem o corpo, nem o espírito lhe
podiam consentir uma fraqueza em semelhante ocasião. Para diante é que era o
caminho! Num ímpeto, chegou-se à porta e meteu-lhe o ombro. Pois claro, como
tinha previsto... Escancaradinha! Com a respiração suspensa e todo num
formigueiro, entrou de rompante no poço de escuridão. Dentro, o primeiro
impulso do seu instinto foi fechar a porta de novo. Mas a razão, chamada a
contas, discordou. Homem, pelo sim, pelo não, deixar o trânsito desimpedido!» In
Miguel Torga, Os Contos da Montanha, Edições Dom Quixote, Coimbra, 1999, ISBN
978-972-201-651-3.
Cortesia
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