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«(…) Em contacto com o ar, a
mescla tingia-o de luto. E, assim empeçonhadas, as auras caíam sobre os
camponeses como uma condenação. A noite mais pavorosa apoderava-se do dia.
Todos interpretaram aquilo como um augúrio do final do universo, segundo se
anuncia nas inscrições dos templos antigos. Os camponeses acolheram a
catástrofe salmodiando cantos mortuários aprendidos nos grandes funerais e
transmitidos de uma geração a outra. Quando os escravos que espargiam os
perfumes descansavam um instante, a nuvem artificial se diluía. Em meio a uma
breve pausa, semelhante a um amanhecer, surgiam como um consolo as águas familiares
do Nilo e, sulcando-as, uma soberba proa em forma de papiro. E, sobre as
estrias rosicleres que o seu avanço abria na corrente, emergia a embarcação de
Cleópatra Sétima.
A suprema majestade de Alexandria
navegava rumo à matriz do Egipto! Então os camponeses descobriram que a famosa
embarcação estava de luto. Negras eram as velas, negro o convés, inteiramente
negras as carrancas e até os régios estandartes. Não anunciaria tudo aquilo algum
lúgubre prodígio? Até ontem, foi uma nave sumptuosa, ainda mais brilhante que
todo o ouro das minas do Sinai, mais deslumbrante que todas as cores das
colunas do templo de Amon. Foi igual a um cofre repleto de riquezas e, hoje,
era uma urna para restos de defuntos. Sulcou os mares até à própria Roma e hoje
parecia um velho corvo que só desejava morrer na ignota solidão dos desertos. Que
ordem pronunciada na distante Alexandria destruíra o donaire daquela galera,
dissimulando-o sob um disfarce tão negro quanto a nuvem que esmagava os azuis
do Nilo? Havia sido um grito de Cleópatra. Pronunciou-o com os braços erguidos,
como se invocasse todas as deusas da vingança, fossem gregas ou egípcias: morte
sobre o meu amor ingrato! Que cubram de luto a minha galera, como a cobriram de
ouro quando fui ao seu encontro. Os tesouros do Egipto despertaram-lhe a
cobiça. Que o luto do Egipto sepulte para sempre a sua lembrança. Luto em minha
nave, ministros. Luto nos céus. E no próprio Nilo, luto.
Tudo foram crepes; portavam
negras braçadeiras os soldados e negras túnicas as damas da que havia sido a
mais amena das cortes. E, como um remate da aparência mortuária da galera,
negro também ficou o solene baldaquim, custódio, por sua vez, do trono que a
rainha ocupava para contemplar o lento passar das margens em navegações mais
felizes. Mas naquele trono enlutado só restava um lenço azul que Cleópatra esquecera.
Era o emblema de sua ausência insubstituível. Ao descobri-lo, exclamou um
personagem de nobre aspecto que, do convés, contemplava os camponeses: continua
sem aparecer. Esconde-se de nós. E já faz três dias que zarpámos de Alexandria.
Assim falou Epistemo. Tinha uma voz melíflua, que arrastava o modo caprichoso
de falar do cortesão, mas escondia uma última inesperada revelação, como convém
à cautela do político. A rainha consegue converter em espectáculo o seu luto de
amor! Se exige tanta sumptuosidade para um abandono, qual não reservará para a
morte, que queiram os deuses retardar o quanto possível?
Dirigia-se a um mancebo de traços
formosos e porte altivo, além de outras singularidades que o convertiam no mais
pitoresco dos tripulantes da nave. Pois, enquanto os demais vestiam negro, como
ordenava o luto da rainha, a suas roupagens eram completamente brancas, como
cabe aos homens que fizeram voto de servir aos interesses da alma. A sua cabeça
era rapada da maneira inconfundível dos que juraram consagrar-se ao serviço dos
deuses. Com um amplo gesto que abarcava o impenetrável negror que os envolvia,
exclamou: todo este luto por um simples amorico! Pois eu te digo que é por um
amor que foi tudo, menos simples. Egrégia em tudo é Cleópatra Sétima. Na
plenitude do amor o era». In Terenci Moix, Cleópatra, Rainha e Mulher,
Prémio Planeta de 1986, Globo, Livros Loureiro, tradução de Eduardo Brandão,
Wikipédia.
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