«Tínhamos
acabado de jantar. Defronte de mim o meu amigo, o banqueiro, grande comerciante
e açambarcador notável, fumava como quem não pensa. A conversa, que fora
amortecendo, jazia morta entra nós. Procurei reanimá-la, ao acaso, servindo-me de
uma ideia que me passou pela meditação. Voltei-me para ele, sorrindo. É
verdade: disseram-me há dias que V. em tempos foi anarquista... Fui, não: fui e
sou. Não mudei a esse respeito. Sou anarquista.
Essa é boa! V. anarquista! Em que
é que V. é anarquista?... Só se V. dá à palavra qualquer sentido diferente... Do
vulgar? Não; não dou. Emprego a palavra no sentido vulgar. Quer V. dizer,
então, que é anarquista exactamente no mesmo sentido em que são anarquistas
esses tipos das organizações operárias? Então entre V. e esses tipos da bomba e
dos sindicatos não há diferença nenhuma? Diferença, diferença, há...
Evidentemente que há diferença. Mas não é a que V. julga. V. duvida talvez que
as minhas teorias sociais sejam iguais às deles?... Ah, já percebo! V., quanto
às teorias, é anarquista; quanto à prática... Quanto à prática sou tão
anarquista como quanto às teorias. E quanto à prática sou mais, sou muito mais,
anarquista que esses tipos que V. citou. Toda a minha vida o mostra. O quê?! Toda
a minha vida o mostra, filho. V. é que nunca deu a esta cousas uma atenção lúcida.
Por isso lhe parece que estou dizendo uma asneira, ou então estou brincando consigo.
Ó homem, eu não percebo nada!...
A não ser..., a não ser que V. julgue a sua vida dissolvente e anti-social e dê
esse sentido ao anarquismo... Já lhe disse que não, isto é, já lhe disse que
não dou à palavra anarquismo um sentido diferente do vulgar. Está bem...
Continuo sem perceber... Ó homem, V. quer-me dizer que não há diferença entre
as suas teorias verdadeiramente anarquistas e a prática da sua vida, a prática
da sua vida como ela é agora? V. quer que eu acredite que V. tem uma vida exactamente
igual à dos tipos que vulgarmente são anarquistas? Não; não é isso. O que eu quero
dizer é que entre as minhas teorias e a prática da minha vida não há
divergência nenhuma, mas uma conformidade absoluta. Lá que não tenho uma vida
como a dos tipo dos sindicatos e das bombas, isso é verdade. Mas é a vida deles
que está fora do anarquismo, fora dos ideais deles. A minha não. Em mim, sim,
em mim, banqueiro, grande comerciante, açambarcador se V. quiser, em mim a
teoria e a prática do anarquismo estão conjuntas e ambas certas. V. comparou-me
a esses parvos dos sindicatos e das bombas para indicar que sou diferente
deles. Sou, mas a diferença é esta: eles (sim, eles e não eu) são anarquistas
só na teoria; eu sou-o na teoria e na prática. Eles são anarquistas e
estúpidos, eu anarquista e inteligente.
Isto é, meu velho, eu é que sou o
verdadeiro anarquista. Eles, os dos sindicatos e das bombas (eu também lá
estive e saí de lá exactamente pelo meu verdadeiro anarquismo), eles são o lixo
do anarquismo, os fêmeas da grande doutrina libertária. Essa nem ao diabo a
ouviram! Isso é espantoso! Mas como concilia V. a sua vida, quero dizer a sua
vida bancária e comercial, coma as teorias anarquistas? Como o concilia V., se
diz que por teoria anarquista entende exactamente o que os anarquistas vulgares
entendem? E V., ainda por cima, me diz que é diferente deles por ser mais anarquista
do que eles, não é verdade? Exactamente. Não percebo nada. Mas V. tem empenho
em perceber? Todo o empenho». In Fernando Pessoa, O Banqueiro Anarquista.
Cortesia de Wikipedia/CFH/UFSC/Magno/JDACT