jdact
e wikipedia
«(…) Um sobrinho pequeno e tagarela a contar-me histórias que eu
não era obrigado a compreender nem a interpretar, aquilo era uma bênção do céu.
Logo
Adam e eu ganhámos o hábito de visitar Izzy depois da escola e almoçar com ele.
Os nazistas tinham fechado a elegante relojoaria que meu amigo possuía na
Cidade Nova, e agora ele consertava relógios numa oficina fria e húmida que
mais parecia uma masmorra, situada na parte da frente de um armazém de artigos
de papelaria na rua Zamenhof. Aquilo de que Adam mais gostava nas tardes que lá
passávamos era ver Izzy fazer uma demorada operação num relógio. O menino
punha-se de joelhos na cadeira e inclinava-se sobre a mesa, com o queixo
apoiado nas mãos fechadas, fascinado com a forma como aquele tio de consideração
conseguia manejar a pinça e colocar no lugar certo as mais microscópicas engrenagens,
rodas dentadas e molas. E ressuscitar o que estava morto. De certa forma, Izzy
transformou-se no feiticeiro da história de Adam no gueto. Tal como Ziv se
transformaria em breve no génio desajeitado…
Um
sábado ao fim da tarde, no princípio de Novembro, o aprendiz de padeiro passou
lá por nossa casa com um tabuleiro de xadrez de alabastro debaixo do braço e
desafiou-me para um jogo. Como um garoto de escola incapaz de se vestir sem a
ajuda da mãe, trazia a fralda da camisa branca à mostra, e os cadarços de um
sapato soltos. O cabelo grosso e ruivo cobria-lhe as orelhas numa desordem
desmazelada. Eu achei que ia ter sorte contra aquele desastrado, mas depois de
vinte minutos ele já me levara a rainha, ambos os bispos e uma torre. Pior: o
atrevido escolhia os lances à velocidade da luz, de tal modo que era sempre eu
a jogar. Uns minutos mais tarde, já tinha encurralado o meu rei. Quando Adam
lhe perguntou como é que conseguia jogar tão depressa, Ziv respondeu: sempre
consegui planear com vários lances de antecedência; ultimamente, uns dez ou doze.
Depois
disso, meu sobrinho começou a olhar para aquele rapaz mais velho do que ele com
uma curiosidade ávida, e nessa noite, já tarde, veio, meio sonolento até a
janela do nosso quarto, onde eu estava acendendo o cachimbo, e perguntou-me se
eu achava que Ziv era mais inteligente do que as outras pessoas. Talvez, mas há
maneiras diferentes de se ser inteligente, disse-lhe eu. É por isso que ele está
sempre calado e é tão…, tão estranho? Com um suspiro, segurei o seu ombro. Espere
só até ter 17 anos, rapaz, e verá que não é uma idade fácil.
Enquanto
me dava uma sova no xadrez, Ziv comentara que o pai de Ewa, que era pediatra, começara
a fazer exames médicos nos meninos de um coro interescolar. Seria uma boa oportunidade
para Adam? O garoto gostava de cantar desde que as luzes da ribalta não o focassem
só ele, e quando, na manhã seguinte, lhe perguntei se não se importava que eu
falasse com o diretor musical, concordou imediatamente. Nessa tarde, descobri o
seu nome, Rowan Klaus, e fui até ao seu pequeno escritório, na escola de Adam.
Era um jovem sério de 20 e poucos anos, de tez morena e uns olhos pretos inteligentes,
bem-apessoado, com ar misterioso, sefardi. Rowy, como ele gostava que o
chamassem, contou-me que estudara violino no Conservatório de Viena até os
nazistas acrescentarem a Áustria ao seu saquinho de guloseimas. Tinha uma tala
artesanal no dedo indicador direito, e quando lhe perguntei o que era aquilo,
respondeu-me que acabara de regressar de um campo de trabalho onde os alemães o
tinham obrigado, a ele e a mais vinte judeus, a cavar valas ao longo do Vístula.
Aquelas bestas sabiam que eu era
violinista, por isso, quando acharam que não estava cavando suficientemente
depressa, seguraram-me no chão e partiram o meu dedo com um martelo. Agora,
andava aterrorizado, com medo de ser vítima de mais uma batida para angariar homens
para trabalhos forçados. Estou sempre pagando subornos, mas eles não dão garantias,
disse-me, taciturno. Na meia hora que se seguiu, Rowy falou da música como uma
nobre vocação, sublinhando a suas opiniões com palavrões em alemão e gestos
exuberantes das mãos. Adam ia ficar encantado com ele, por isso o inscrevi para
uma audição imediata, e nessa mesma tarde ele conseguiu, lá, aguentar-se nos
altos e baixos da sua prova de solfejo. Contudo, ainda seria preciso passar no
exame médico». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009,
Editora Record, 2010, ISBN 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN
978-972-004-728-1.
Cortesia
de ERecord/PortoEditora/JDACT