Cortesia
de wikipedia e jdact
Agendar
a Vida
«(…) Ou: quinze minutos para se recostar para
trás na cadeira (pode ser do escritório mesmo) e espiar o céu fora da janela;
ir até a sala, esticar-se no sofá com as pernas sobre o braço do próprio, e
ouvir música, ver televisão, ler, ler, ler..., ou simplesmente não fazer nada. O
ócio é uma possibilidade infinita a ser explorada. Não falo da inércia, do
desânimo, do vazio melancólico. Jamais falarei de ficar de robe-velho e
pantufas (vi numa vitrine algumas com cara de cachorro e até orelhas!) pela
casa até ao meio da tarde. Falo de viver. Parar, olhar, escutar, dizia um aviso
nos trilhos do trem quando havia trem entre a minha cidade e Porto Alegre. A
gente passava de carro sobre o trilho, e eu imaginava o horror de alguém
infringir isso e ser explodido pelo monstro de ferro e fumaça. A vida há de
rolar por cima da gente, reduzindo a poeirinha inútil quem se esquecer de às
vezes parar p’ra pensar..., mas sem se desmontar; olhar em torno ou para
dentro: paisagens belas, ou áridas (sempre dá pra plantar um capim) ou quem sabe coloridas (a alma pode brincar
de esconde-esconde entre as folhas). E escutar: a música do universo, o canto
do sabiá (que tem começado às 3 da madrugada fria, atarantado neste clima
estranho); a risada da criança no andar de cima; enfim, o chamado da vida que
nos convoca de mil formas: anda, sai do marasmo, viveeeeeeeeeee!! Que nossas
agendas (também as interiores) nos permitam muitas vezes a plenitude do nada sorvido
como um gole de champanhe, celebrando tudo. Sem culpa.
Canção
das Mulheres
Que o outro saiba quando estou com medo,
e me tome nos braços sem fazer perguntas demais. Que o outro note quando
preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o
amarei menos porque estou quieta. Que o outro aceite que me preocupo com ele e
não se irrite com a minha solicitude, e se ela for excessiva saiba-me dizer isso com delicadeza ou bom humor. Que o
outro perceba a minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso. Que
se eu faço uma asneira o outro goste um pouco mais de mim, porque também
preciso poder fazer tolices tantas vezes. Que se estou apenas cansada o outro
não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo
demais. Que o outro sinta quanto me dói a ideia da perda, e ouse ficar comigo
um pouco, em lugar de voltar logo à sua vida, não porque lá está a sua verdade
mas talvez seu medo ou sua culpa. Que se começo a chorar sem motivo depois de
um dia daqueles, o outro não desconfie logo que é culpa dele, ou que não o amo
mais. Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer
alarde nem dizendo olha que estou tendo muita paciência com V.! Que se me
entusiasmo por alguma coisa o outro não a diminua, nem me chame de ingénua, nem
queira fechar essa porta necessária
que se abre para mim, por mais tola que lhe pareça». In LyaLuft,
Pensar é Transgredir, 2004, Rio de Janeiro, Editora Record, 2009, 2011, ISBN
978-850-109-376-9.
Cortesia de ERecord/JDACT