terça-feira, 30 de abril de 2019

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «Viu-se no meio da loja movimentada do pai, que lhe dizia: precisas de tecidos? Escolhe o que quiseres, minha filha! A frescura das sedas deslizava-lhe por entre os dedos...»

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«(…) Além disso, acrescentou Tomé, Afonso Henriques é de opinião que este pedido de ajuda só prova que os mouros aqui de Lisbona estão desesperados. Se calhar, até já se regateiam os preços das ratazanas lá no mercado deles, o tal suq! Riram-se todos, menos Konrad, que continuava a reflectir sobre o episódio da carta. Acabou por dizer: a questão é o que esse Ibn Wazir de Évora considera ser mais importante: manter a paz com Ibn Qasi, ou vir ajudar os seus irmãos de fé? Ninguém pode com toda a certeza responder a essa pergunta, admitiu Julião. Mas podemos rezar. E el-rei está confiante, o que nos sossega. A voz de Afonso Henriques é a voz de Deus, completou Tomé.

Aischa sabia que não conseguiria adormecer. Esperou que as outras mulheres se deitassem para se escapulir para o jardim. Agachou-se a um canto junto ao repuxo, que nestes tempos não era posto a funcionar, e deixou correr as lágrimas. Este dia de início de Setembro tinha sido um dos mais difíceis, desde que o cerco começara. Não que os cruzados tivessem levado a cabo algum ataque mais forte, mas Abdalah morrera, sem parar de balbuciar que o fim do mundo estava próximo. Passara as últimas duas semanas em casa de Malik Ibn Danaf, a pedido de Aischa, para que se pudesse tratar melhor dele. O que em princípio seria tarefa das criadas e escravas, mas Aischa fizera-o muitas vezes pessoalmente, quanto mais não fosse, para ter com que se ocupar. E gostava sinceramente do ancião, que tantas vezes a encantara com as suas histórias, considerava-o quase como um avô. Abdalah morrera na certeza que se reencontraria com o seu pai e que, no Paraíso de Alá, reviveria o esplendor do califado de al-Andalus. Mas Aischa arrepiava-se, ao pensar que o cadáver seria devorado pelo fogo, sem lhe fazerem o funeral. Esta era, no entanto, a melhor solução, pois o almocavar estava inalcançável.
Mas não se dava tal destino a todos os cadáveres. Morria tanta gente, que era impossível queimá-los todos e havia, além disso, o medo de incêndios. Assim se iam os cadáveres empilhando pelas ruas, lançando o seu odor pestilento. Doenças iam-se espalhando, o número de feridos em combate aumentava de dia para dia e houvera necessidade de improvisar um hospital na mesquita aljama, pois todos os outros já rebentavam pelas costuras. Agora, havia quem dissesse que seria melhor levar para lá também os cadáveres, a fim de evitar a propagação de mais doenças. Aischa, porém, atormentava-se com a ideia de que se chegasse ao ponto em que ninguém se prontificaria a ir lá tratar dos doentes, devido ao cheiro, deixando-os para lá a agonizar. Também ela e a sua família se arriscavam a morrer de fome. As refeições eram cada vez mais parcas. O pai dela possuía burros de carga e dois cavalos, mas nenhuns animais de criação. Sempre comprara a carne de cabrito, a mais apreciada entre os mouros, aos aldeões das redondezas. Muitos desses pastores haviam procurado protecção entre as muralhas, trazendo alguns animais, mas já quase não havia nenhum. Também as galinhas desapareceriam antes de começar o Inverno e os pescadores não podiam sair para deitar as suas redes ao rio. Ainda se poderiam alimentar dos burros ou dos cavalos, em último caso de cães e gatos. Já havia quem o fizesse e o estômago de Aischa revoltava-se perante tal pensamento. Felizmente, eles ainda tinham alguns grãos de trigo, frutos secos e azeite na cave, mas já eram racionados, o que não causava apenas problemas na alimentação. Os candis que antigamente se encontravam por toda a casa em nichos nas paredes, iluminando os quartos, corredores e até o jardim, limitavam-se agora às divisões onde estivessem pessoas.
Os dias iam ficando mais pequenos e a escuridão, a tristeza e a pestilência apoderavam-se de Lusbuna, outrora a cidade-luz. Aischa lembrou-se ainda daqueles que se rendiam aos cruzados, na esperança de ficarem ao seu serviço, a troco de comida. Mas alguns majus eram tão cruéis, que lhes decepavam pés e mãos e os devolviam à cidade. Os coitados acabavam por morrer junto às muralhas, apedrejados pelos próprios concidadãos, que os apelidavam de traidores. Aischa chorou até não ter mais lágrimas. Se não fosse tão tarde, iria buscar o seu alaúde e cantaria a melancolia que lhe atormentava a alma. Assim, fechou os olhos e começou a compor em silêncio uma cantiga sobre a Lusbuna que desaparecia: a multidão a regatear preços no suq, à sombra das coberturas de pano ou das esteiras de esparto, que se estendiam entre as casas, protegendo as ruelas do sol abrasador; o aroma da canela e dos cominhos, vindos de outras terras do Islão, através do Mar Mediterrâneo; o peixe prateado nos cestos dos pescadores; as lojas dos prateiros e dos ourives, das sedas e brocados, junto à bâb al-hammã...
Viu-se no meio da loja movimentada do pai, que lhe dizia: precisas de tecidos? Escolhe o que quiseres, minha filha! A frescura das sedas deslizava-lhe por entre os dedos... Um sopro de vento fez-lhe chegar um remoto odor pestilento às narinas, um gemido de dor fez-se ouvir ao longe, trazendo a moça de volta à realidade, ao seu canto escuro. Lusbuna nunca mais será a mesma, pensou, e eu não tornarei a ser feliz. Mais valia morrer antes que os cruzados tomassem a cidade e começassem a saquear, a matar os homens, a violar as mulheres... Ouviu passos e afligiu-se. Se Abu a descobrisse aqui, a esta hora... Mas não era o irmão mais velho que se aproximava dela, viu os olhos esverdeados de Rashid a luzir na escuridão. Aischa, que estás aqui a fazer ao frio? Ainda apanhas alguma febre. E qual era o mal? Ora, não chegues ao ponto de desejar a morte. Já não aguento mais, Rashid. Não é só toda esta miséria que me oprime. Tu, o pai e Abu correis grande perigo todos os dias. Que faríamos sem vós? Rashid suspirou: desde que o rei de Évora recusou a sua ajuda, pouca esperança haverá de... Como é que esse Ibn Wazír pode assistir impávido à miséria dos seus irmãos de fé?, inquiriu furiosa. Não quer melindrar o rei português? Esse Ibn Errik deve ter um pacto com o diabo! Não uses linguagem dessa, Aischa! Ainda tens esperança Rashid? Onde a vais buscar? Haverá maneira de nos salvarmos?» In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT