sábado, 27 de abril de 2019

A Biblioteca Secreta de Leonardo. Francesco Fioretti. «Aqui estão eles, os cento e dezanove soldos. Conte-os também, por segurança. Desta vez, pelo menos, ser Fazio apresentara-se com uma cópia nova e não cortada da Summa de Luca Pacioli»

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Prólogo
«A quinta-essência, espírito dos elementos, vendo-se aprisionada pela alma do corpo humano, deseja sempre regressar ao seu mandatário. E vós, sabei que este desejo existe na quinta-essência companheira. E o homem é modelo do mundo. Aprende a multiplicação das raízes com o mestre Luca». In apontamentos de Leonardo da Vinci

E era assim que acontecia também em Sforzinda, a cidade perfeita desenhada por Filarete, em estrela de oito torres, inscrita no círculo e no octógono, com os seus bastiões, e os muros possantes. Que estava agora seriamente ameaçada pelas forças obscuras e agressivas do Esquecimento, do Primeiro Caos, da Desmentegansa, como se diz por aqui. Mas não ficara ninguém a resistir, a vender, como nós, cara a pele. Apenas Salai e eu, um frade, uma duquesa sem ducado, mais ninguém, barricados cá dentro. Felizmente, tudo estava bem predisposto. O inimigo chegaria de todas as direcções, de todas as partes apontaria contra os muros as suas bocas de fogo aterradoras... Vivemos um tempo férvido e agora vieram reclamá-lo.
[…]

Milão. Corte Vecchia. 7 de Fevereiro de 1496
O rapaz entrou ofegante e de rosto pálido, naquele seu habitual ar descontraído e rebelde , cruz e delícia do seu mestre. Leonardo observou-o com atenção, fingindo que nada se passava e continuando a conversar com Fazio Cardano, que fora visitá-lo à sua oficina da Corte Vecchia, ao lado da catedral. Fazio Cardano, desdentado e muito feio, tinha o seu costumeiro fato vermelho, e estava a pôr a capa preta. Vestia-se sempre do mesmo modo: era uma personagem singular. Em Milão ninguém sabia se era médico ou jurisconsulto, mas certo era que se ocupava de alquimia e de ciências ocultas. Passara há pouco os 50 anos, por vezes falava sozinho, com o seu génio familiar, dizia ele. Sabia imensas coisas, mas era a confusão em pessoa, misturava ciência e superstição, astrologia e anatomia, álgebra e mitologia egípcia, num saber desordenado e desprovido de método, no qual os demónios e os teoremas de Euclides eram objecto da mesma não muito bem definida matéria de estudo. Mas possuía livros valiosos, e Leonardo há muito tempo que fazia a corte à perspectiva de Al-Kindi, que Fazio se gabava de possuir, mas que nunca lhe mostrara. E, gostaria de aprender as matemáticas de que ser Fazio se dizia especialista, mas evitava sempre as suas perguntas: como se enquadra um triângulo, e porque é impossível enquadrar um círculo?
Aqui estão eles, os cento e dezanove soldos. Conte-os também, por segurança. Desta vez, pelo menos, ser Fazio apresentara-se com uma cópia nova e não cortada da Summa de Luca Pacioli, Tê-la-ia dado por 130 soldos, uma quantia bastante consistente, mais do dobro do que lhe custara a Bíblia em língua vulgar que deveria servir-lhe para a Última Ceia de Santa Maria delle Grazie. O livro do franciscano de Sansepolcro era, contudo, precisamente aquilo de que Leonardo necessitava. Ali estava tudo. Era de facto a soma de todo o saber matemático do seu tempo: da álgebra à partida dobrada, da arquitectura à perspectiva, da geometria euclidiana à matemática financeira... Ali estava mesmo tudo. Após uma longa negociação, haviam descido até 119 soldos, e agora Cardano, após guardar o dinheiro num saquinho de pele, decidira-se finalmente a ir embora. A Summa, bem encadernada, estava ali, em cima da mesa no meio daquela grande divisão». In Francesco Fioretti, A Biblioteca Secreta de Leonardo, 2018, Marcador Editora, Editorial Presença, 2019, ISBN 978-989-754-394-4.

Cortesia de MarcadorE/EPresença/JDACT