quinta-feira, 25 de abril de 2019

Meninas. Maria Teresa Horta. «Com lágrimas nos olhos lambi o arranhão esquivo e delicado, um risco vermelho que depressa se tornará difuso mas apesar de tudo ardente»

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A Ilha
«(…) Ficas quieta, à varanda com a tua avó, a ver passar a procissão, sem desassossegos, disse-me o meu pai indiferente às vozes altas que chegavam da rua numa amálgama de risos e sussurros, exaltações e sobressaltos, à mistura com a música, embora ainda ao longe, mas que percebia aproximar-se devagar, sincopada e metálica. Distraída consigo mesma, a minha mãe continuava fechada no quarto, onde a fui encontrar sentada diante do espelho do pequeno e delicado toucador de cânhamo que comprara mal chegara à ilha. Pintava a boca com vagares de demora, primeiro contornando, delineando, e depois cobrindo os lábios com o bâton muito vermelho, a contrastar com a palidez do seu rosto ávido e com o louro das sobrancelhas do tom exacto dos cabelos ondeados a tombarem-lhe nos ombros cobertos pelo cetim azul-lilás do vestido cingido, segundo me lembro até hoje, folheando a memória, ou nos ombros cobertos pela seda cinzento-pérola do mesmo vestido cingido, tal como a dá a ver, desmentindo-me, uma fotografia que ainda hoje guardo. Por instantes fiquei a vê-la a pôr nos pulsos finos, os dedos muito lentos nos pulsos, o perfume do frasco largo de cristal trabalhado, a fugir de novo e de novo de junto de nós, olhos de sereia arredia e fatal. Mas nesse dia, sentindo-me demasiado impaciente para ficar presa do seu feitiço, esgueirei-me mansa para o corredor estreito e sombrio.
Pequena espia a deslizar com passos de silêncio até à porta entreaberta do escritório do meu pai, onde me detive poucos segundos a espreitar pela sua frincha estreita, por onde passava o habitual cheiro a cadernos e a livros, a tinta do tinteiro e da caneta com que escrevia as receitas e outros papéis que enchia com a sua letra miúda e secreta. Recuei, retornando ao meu passo de deslize no chão encerado há pouco, atenta aos barulhos vindos da cozinha, onde a avó fazia o doce para o jantar; parei por momentos a olhá-la da penumbra onde me chegava o arrulhar encrespado do leite a ferver com o açúcar, a erva-doce e a casca de limão no tacho redondo, no qual pouco a pouco ela ia deitando o fio das gemas dos ovos, ficando a mexê-los depois com a colher de pau de cabo comprido, enquanto o cheiro a ambrósia me fazia crescer água na boca.
Recordo quase ter sucumbido à tentação de ir para junto dela a encostar-me à sua ilharga quente e acolhedora, ali diante do fogão de lenha, avental branco demasiado comprido para a sua estatura pequena e franzina diante da pedra de mármore do poial. No entanto continuei a andar rente-rente à parede caiada com cheiro a mar, como aliás tudo na ilha do Faial, até chegar à maciça porta da rua. Tentei alcançar o seu fecho de ferro escuro e fazê-lo correr, recordo-me, uma lingueta grossa a ir afundar-se na cavilha igualmente de ferro, cravada na ombreira oposta, desbotada, a esboroar-se de velha que era. Procurei mover o fecho outra e outra vez, muito direita a desejar fazer-me maior, braços erguidos acima da cabeça, e estava quase a desistir quando ele acabou por ceder, cortando-me ao de leve a palma da mão esquerda onde ficou desenhado um longo e finíssimo traço sanguíneo. Com lágrimas nos olhos lambi o arranhão esquivo e delicado, um risco vermelho que depressa se tornará difuso mas apesar de tudo ardente. Quando finalmente consegui empurrar a porta, que logo voltei a fechar atrás de mim, comecei a descer degrau a degrau, muito altos, as escadas íngremes à minha frente.
Ficas quieta, à varanda com a tua avó, a ver passar a procissão, sem armares confusões!, ordenara o meu pai abrindo a janela da sala e encostando às suas grades de ferro trabalhado uma cadeirinha de espaldar baixo para onde eu deveria subir, mas que logo vi abanar numa espécie de entrecortado arrebatamento, para em seguida deslizar de lado, empurrada pelo curtíssimo tremor de terra, que também fez tilintar as chávenas da Vista Alegre penduradas pelas asas quebradiças nos leves ganchos de metal do guarda-louça da sala de jantar». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT