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A
Ilha
«(…) Ficas quieta, à
varanda com a tua avó, a ver passar a procissão, sem desassossegos, disse-me
o meu pai indiferente às vozes altas que chegavam da rua numa amálgama de risos
e sussurros, exaltações e sobressaltos, à mistura com a música, embora ainda ao
longe, mas que percebia aproximar-se devagar, sincopada e metálica. Distraída
consigo mesma, a minha mãe continuava fechada no quarto, onde a fui encontrar
sentada diante do espelho do pequeno e delicado toucador de cânhamo que
comprara mal chegara à ilha. Pintava a boca com vagares de demora, primeiro
contornando, delineando, e depois cobrindo os lábios com o bâton muito
vermelho, a contrastar com a palidez do seu rosto ávido e com o louro das sobrancelhas
do tom exacto dos cabelos ondeados a tombarem-lhe nos ombros cobertos pelo
cetim azul-lilás do vestido cingido, segundo me lembro até hoje, folheando a
memória, ou nos ombros cobertos pela seda cinzento-pérola do mesmo vestido
cingido, tal como a dá a ver, desmentindo-me, uma fotografia que ainda hoje
guardo. Por instantes fiquei a vê-la a pôr nos pulsos finos, os dedos muito
lentos nos pulsos, o perfume do frasco largo de cristal trabalhado, a fugir de
novo e de novo de junto de nós, olhos de sereia arredia e fatal. Mas nesse dia,
sentindo-me demasiado impaciente para ficar presa do seu feitiço, esgueirei-me mansa
para o corredor estreito e sombrio.
Pequena espia a
deslizar com passos de silêncio até à porta entreaberta do escritório do meu
pai, onde me detive poucos segundos a espreitar pela sua frincha estreita, por
onde passava o habitual cheiro a cadernos e a livros, a tinta do tinteiro e da
caneta com que escrevia as receitas e outros papéis que enchia com a sua letra
miúda e secreta. Recuei, retornando ao meu passo de deslize no chão encerado há
pouco, atenta aos barulhos vindos da cozinha, onde a avó fazia o doce para o
jantar; parei por momentos a olhá-la da penumbra onde me chegava o arrulhar
encrespado do leite a ferver com o açúcar, a erva-doce e a casca de limão no
tacho redondo, no qual pouco a pouco ela ia deitando o fio das gemas dos ovos,
ficando a mexê-los depois com a colher de pau de cabo comprido, enquanto o
cheiro a ambrósia me fazia crescer água na boca.
Recordo quase ter
sucumbido à tentação de ir para junto dela a encostar-me à sua ilharga quente e
acolhedora, ali diante do fogão de lenha, avental branco demasiado comprido
para a sua estatura pequena e franzina diante da pedra de mármore do poial. No
entanto continuei a andar rente-rente à parede caiada com cheiro a mar, como
aliás tudo na ilha do Faial, até chegar à maciça porta da rua. Tentei alcançar
o seu fecho de ferro escuro e fazê-lo correr, recordo-me, uma lingueta grossa a
ir afundar-se na cavilha igualmente de ferro, cravada na ombreira oposta,
desbotada, a esboroar-se de velha que era. Procurei mover o fecho outra e outra
vez, muito direita a desejar fazer-me maior, braços erguidos acima da cabeça, e
estava quase a desistir quando ele acabou por ceder, cortando-me ao de leve a
palma da mão esquerda onde ficou desenhado um longo e finíssimo traço
sanguíneo. Com lágrimas nos olhos lambi o arranhão esquivo e delicado, um risco
vermelho que depressa se tornará difuso mas apesar de tudo ardente. Quando
finalmente consegui empurrar a porta, que logo voltei a fechar atrás de mim, comecei
a descer degrau a degrau, muito altos, as escadas íngremes à minha frente.
Ficas quieta, à varanda com a tua
avó, a ver passar a procissão, sem armares confusões!, ordenara o meu pai abrindo a janela da sala e encostando às suas
grades de ferro trabalhado uma cadeirinha de espaldar baixo para onde eu
deveria subir, mas que logo vi abanar numa espécie de entrecortado
arrebatamento, para em seguida deslizar de lado, empurrada pelo curtíssimo
tremor de terra, que também fez tilintar as chávenas da Vista Alegre penduradas
pelas asas quebradiças nos leves ganchos de metal do guarda-louça da sala de
jantar». In Maria Teresa
Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.
Cortesia de PdQuixote/JDACT