segunda-feira, 15 de abril de 2019

Camões e a Infanta D. Maria. Ceuta. José Maria Rodrigues. «A vós se dem, a quem junto se ha dado brandura, mansidão, engenho e arte, de um esprito divino acompanhado, dos sobr’humanos um em toda a parte»

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De volta de Ceuta
«(…)

Vem, como quando o raio transparente
Deste nosso horizonte, que, escondido.
Deixa um certo temor á mortal gente,
Causado de ver o orbe escurecido;
E quando torna a vir, claro e luzente,
Alegra o mundo todo entristecido:
Que assí é para mi tua luz pura
Claro sol, como a ausência noite escura.

Mas tu, 'squecida já do bem passado
E do primeiro amor que me mostraste,
Teu coração de mi tens apartado,
Não menos que do valle te apartaste.
Não te quero eu a ti mais que a meu gado?
Não sou eu mesmo aquelle que tu amaste?
Onde o meu erro viste ou desvario,
Que pôde merecer-te um tal desvio?

                                                          
Se te apartas, por não ouvir meu rogo,
Onde estiveres te hei de importunar;
Posto que vás por agua, ferro ou fogo,
Comtigo em toda a parte me has de achar;
Que o fogo em que ardo e a agua em que me afogo,
Emquanto eu vivo fôr, hão de durar.
Pois o nó que me enlaça é de tal sorte.
Que não se ha de soltar em vida ou morte.

Neste meu coração sempre estarás;
Emquanto a alma estiver com elle unida,
Também o meu esprito possuirás,
Despois que a alma do corpo fôr partida.
Por mais e mais que faças, não farás
Que deixe o amar-te nesta e ess’outra vida.
Impossivel será que eternamente
Ausente estês  de mi, estando ausente.
(Apesar de ausente, estarás sempre presente)

Foi improfícuo o recurso a pessoas de elevada posição social, que, condoídas do pobre sonhador, despenhado da altura das suas illusões, e receosas, por certo, de uma funesta recaída, se prestavam a ouvir-lhe os queixumes e suspiros magoados.

A quem darei queixumes namorados
Do meu pastor queixoso e namorado?
A branda voz, suspiros maguados,
A causa porque na alma é maguado?
De quem serão seus males consolados?
Quem lhe fará devido gasalhado?
Só vós, Senhor famoso e excelente,
Especial em graças entre a gente.

Por partes mil lançando a phantasia.
Busquei na terra estrella que guiasse
Meu rudo verso, em cuja companhia
A santa piedade sempre andasse,
Luzente e clara, como a luz do dia,
Que o rudo engenho meu me allumiasse;
E em vossas perfeições, grão Senhor, vejo
Ainda além cumprido o meu desejo.

A vós se dem, a quem junto se ha dado
Brandura, mansidão, engenho e arte,
De um esprito divino acompanhado,
Dos sobr’humanos um em toda a parte.
Em vós as graças todas se hão juntado;
De vós em outras partes se reparte.
Sois claro raio, sois ardente chamma,
Gloria e louvor do tempo, asas da fama.

Nota: Segundo W. Storck (Vida de Camões, esta égloga foi dirigida ao 2.º conde de Linhares, Francisco Noronha, havendo no principio da 2.ª estancia uma referencia á condessa dona Violante. (Diga-se de passagem que neste tempo ainda lhes não tinha sido dado o titulo. Só depois da renuncia do irmão mais velho, Ignacio Noronha, o braguilha, é que  João III, em 1556, declarou 2.º conde de Linhares o seu antigo embaixador na corte de França). É porém hoje convicção minha : 1º) que a egloga se refere a uma pessoa só; 2.º) que essa pessoa era um prelado. Relêam-se as três estancias e repare-se nas qualidades que o poeta attribue ao senhor famoso e excellente. Sobre o assumpto já a dona Carolina Michaelis escreveu em nota a Storck, Vida de Camões: A engenhosa interpretação de Storck será mais plausível para os que lerem a bella versão germânica, do que para os portugueses que recorrem ao original, porque, emquanto aquella já vem esclarecida, está este mal ponctuado e bastante obscuro. Os versos 11 e 12, por exemplo, em cuja companhia a santa piedade sempre andasse e principalmente o 20 dos sobrehumanos um em toda a parte ficam, ainda assim, um pouco enygmaticos, para mim pelo menos. Quem seria esse prelado? Presumo que é o ditoso Pinheiro do soneto 190, isto é, talvez o barcellense Rodrigo Pinheiro, que era bispo de Angra desde 1548 e esteve á frente da diocese do Porto desde 1552 até 1572. (Sobre a importância que na corte possuía este prelado, que era governador da casa do civel na occasião em que foi escripta a egloga 5.ª veja-se, por exemplo, Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana). Em António Pinheiro, bispo de Miranda e depois de Leiria e ao tempo mestre do mallogrado príncipe herdeiro João, é escusado pensar, me parece, pois esse só foi elevado á dignidade episcopal no reinado de Sebastião, quando Julião d’Alva deixou o bispado de Miranda em 1565. Segundo alguns camonistas, o soneto 190 refere-se a Gonçalo Pinheiro, então bispo de Tanger e desembargador do paço.

[…]

In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT