De volta de Ceuta
«(…)
Vem, como quando o raio transparente
Deste nosso horizonte,
que, escondido.
Deixa um certo temor á mortal
gente,
Causado de ver o orbe
escurecido;
E quando torna a vir, claro
e luzente,
Alegra o mundo todo entristecido:
Que assí é para mi tua luz
pura
Claro sol, como a ausência
noite escura.
Mas tu, 'squecida já do bem
passado
E do primeiro amor que me
mostraste,
Teu coração de mi tens
apartado,
Não menos que do valle
te apartaste.
Não te quero eu a ti mais
que a meu gado?
Não sou eu mesmo aquelle
que tu amaste?
Onde o meu erro viste ou
desvario,
Que pôde merecer-te um tal
desvio?
Se te apartas, por não ouvir
meu rogo,
Onde estiveres te hei de
importunar;
Posto que vás por agua, ferro
ou fogo,
Comtigo em toda a parte me
has de achar;
Que o fogo em que ardo e
a agua em que me afogo,
Emquanto eu vivo fôr, hão
de durar.
Pois o nó que me enlaça é
de tal sorte.
Que não se ha de soltar em
vida ou morte.
Neste meu coração sempre
estarás;
Emquanto a alma estiver com
elle unida,
Também o meu esprito
possuirás,
Despois que a alma do corpo
fôr partida.
Por mais e mais que faças,
não farás
Que deixe o amar-te nesta
e ess’outra vida.
Impossivel será que eternamente
Ausente estês de mi, estando ausente.
(Apesar de ausente, estarás sempre
presente)
Foi improfícuo o recurso
a pessoas de elevada posição social, que, condoídas do pobre sonhador, despenhado
da altura das suas illusões, e receosas, por certo, de uma funesta recaída, se prestavam
a ouvir-lhe os queixumes e suspiros magoados.
A quem darei queixumes
namorados
Do meu pastor queixoso e
namorado?
A branda voz, suspiros maguados,
A causa porque na alma é
maguado?
De quem serão seus males
consolados?
Quem lhe fará devido
gasalhado?
Só vós, Senhor famoso e excelente,
Especial em graças entre
a gente.
Por partes mil lançando a
phantasia.
Busquei na terra
estrella que guiasse
Meu rudo verso, em cuja companhia
A santa piedade sempre andasse,
Luzente e clara, como a
luz do dia,
Que o rudo engenho meu me
allumiasse;
E em vossas perfeições, grão
Senhor, vejo
Ainda além cumprido o meu
desejo.
A vós se dem, a quem junto
se ha dado
Brandura, mansidão, engenho
e arte,
De um esprito divino acompanhado,
Dos sobr’humanos um em toda a parte.
Em vós as graças todas se
hão juntado;
De vós em outras partes se
reparte.
Sois claro raio, sois ardente
chamma,
Gloria e louvor do tempo, asas da fama.
Nota: Segundo W. Storck (Vida de Camões,
esta égloga foi dirigida ao 2.º conde de Linhares, Francisco Noronha, havendo no
principio da 2.ª estancia uma referencia á condessa dona Violante. (Diga-se de passagem
que neste tempo ainda lhes não tinha sido dado o titulo. Só depois da renuncia do
irmão mais velho, Ignacio Noronha, o braguilha, é que João III, em 1556, declarou 2.º conde de Linhares
o seu antigo embaixador na corte de França). É porém hoje convicção minha : 1º)
que a egloga se refere a uma pessoa só; 2.º) que essa pessoa era um prelado. Relêam-se
as três estancias e repare-se nas qualidades que o poeta attribue ao senhor famoso
e excellente. Sobre o assumpto já a dona Carolina Michaelis escreveu em nota a Storck,
Vida de Camões: A engenhosa interpretação de Storck será mais plausível para os
que lerem a bella versão germânica, do que para os portugueses que recorrem ao original,
porque, emquanto aquella já vem esclarecida, está este mal ponctuado e bastante
obscuro. Os versos 11 e 12, por exemplo, em cuja companhia a santa piedade sempre
andasse e principalmente o 20 dos sobrehumanos um em toda a parte ficam,
ainda assim, um pouco enygmaticos, para mim pelo menos. Quem seria esse prelado?
Presumo que é o ditoso Pinheiro do soneto 190, isto é, talvez o barcellense
Rodrigo Pinheiro, que era bispo de Angra desde 1548 e esteve á frente da diocese
do Porto desde 1552 até 1572. (Sobre a importância que na corte possuía este prelado,
que era governador da casa do civel na occasião em que foi escripta a egloga 5.ª
veja-se, por exemplo, Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana). Em António Pinheiro,
bispo de Miranda e depois de Leiria e ao tempo mestre do mallogrado príncipe
herdeiro João, é escusado pensar, me parece, pois esse só foi elevado á dignidade
episcopal no reinado de Sebastião, quando Julião d’Alva deixou o bispado de Miranda
em 1565. Segundo alguns camonistas, o soneto 190 refere-se a Gonçalo Pinheiro, então
bispo de Tanger e desembargador do paço.
[…]
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.