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«(…) Ao ouvir a frase, João
Lourenço Cunha ergueu a cabeça, arregalou os olhos de gozo e, apesar de ter a
boca ocupada por um naco de carne, interveio de imediato: a estaca já entrou na
terra..., só que ainda não pegou. Todos riram com o dichote, excepto a própria
mulher, o irmão dela e o lente de Coimbra, Vicente Esteves, que não tinha
tirado os olhos de cima da dama desde que ali chegara. Corada de vergonha,
ofendida pela deselegância e pelo tom pífio das palavras do marido, Leonor não
perdeu tempo a vingar-se, comentando num tom de voz suave mas determinado: a
terra é boa e de bom amanho, mas a estaca, infelizmente, é que não é da melhor
qualidade. Se o alarido tinha sido imenso quando João Lourenço proferiu a
grosseria, maior o foi à ironia do comentário de Leonor Teles. Até o médico, de
todos o mais seráfico, poisou na mesa o vaso de vinho que naquele momento ia levar
à boca para bater palmas. O próprio conde de Barcelos, rindo como um bruto, não
resistiu à tentação de felicitar a sobrinha pelo sentido de oportunidade e
rapidez de raciocínio. Tens uma boa cabeça, estimada sobrinha, e só por aí se
vê que descendes da ilustre linha dos Menezes...
João Lourenço Cunha tinha
assistido calado e sério ao alvoroço que se gerara com a resposta da mulher à
sua bestice, mas quando o conde enalteceu a qualidade superior da parentela dos
Menezes levantou-se de cabeça perdida e, com toda a força, espetou no tampo da
mesa o punhal com que se estava a servir. Bem ou mal, certo ou errado, ele
interpretara as palavras de João Afonso Telo como um insulto à família dos
Sousas, de que ele próprio descendia. A linhagem dos Sousas é tão honrada na
Beira quanto o tronco dos Menezes..., gritou cheio de rancor e álcool. Nessa
altura, Leonor Teles e o irmão levantaram-se quase ao mesmo tempo para se
dirigirem a ele de faca na mão, mas o tio, impondo respeito e ordem, mandou-os
sentar imediatamente para dizer umas palavras. Eu e os meus estimados amigos
viemos aqui para celebrar as primeiras semanas de casamento da minha sobrinha
com o senhor do morgado de Pombeiro, João Lourenço Cunha, começou por dizer com
voz calma mas categórica, continuando após uma pequena pausa, sempre de olhos
no casal: foi com algum sacrifício que fizemos a viagem debaixo de intenso frio.
Por isso, nem eu nem nenhum dos meus honrados amigos e o meu sobrinho Gonçalo
estamos dispostos a ouvir desconsiderações e tentativas de confronto entre duas
famílias que, apesar de linhagens diferentes, e ainda que uma delas seja mais
nobre do que a outra, são ambas respeitáveis na Beira, em Trás-os-Montes, e até
mesmo no país inteiro. Proponho pois que esqueçamos este conflito, que dona
Leonor Teles e João Lourenço dêem as mãos, que regressemos ao jantar e, já
agora, saudemos com a respeitável vénia, todos de pé e de vasos de vinho na mão,
o aniversário de sua alteza real, o senhor Fernando, que completou vinte e
quatro anos, faz hoje precisamente um mês.
Todos se levantaram de uma
assentada, todos se curvaram respeitosamente, todos aplaudiram o discurso e
todos regressaram à comida e ao vinho. Só Leonor Teles e João Lourenço, no meio
de tantos ritos propostos pelo conde, se esqueceram ou não quiseram dar as mãos
conforme a sugestão do conde. Mas nisso ninguém reparou. Uma vez ultrapassado o
incidente, não demorou que os convivas se enredassem nas habituais conversas e
intrigas políticas que tanto apreciavam, sobretudo quando se reuniam nos
festins ou lhes era dado participar em manifestações de idêntica natureza. A
propósito do aniversário do rei, recordado por João Afonso Telo e saudado por
todos, começou por se falar, embora com muito cuidado, respeito e bastas cautelas,
da estouvada prodigalidade do monarca, da sua desídia pelo trabalho, da
inconsistência nas suas atitudes, do tempo que dedicava à caça e à montaria em
prejuízo da atenção que devia prestar aos negócios do reino». In
José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN
978-989-555-113-2.
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