jdact
1754-1758
«(…) Anseio pelo que é alvo e puro, sem
nenhuma memória, condenada eu a adivinhar o futuro. Naquele instante, no
entanto, conseguindo iludir o conhecimento do tempo que ainda há-de vir,
adiantado pelas alucinações que chegam de madrugada. Mas quando ela me viu
recuei, consciente e expectante diante da imagem do meu próprio avesso,
entregue já à sua fraqueza dúctil e nela me reconhecendo: meu outro mesmo lado,
sol da minha sombra, lua do meu negrume, rosa-do-mato ou flor de açucena.
Criança delicada e suspeitosa com quem logo me senti irmanada sem nunca nos
termos chegado a tocar, apesar do encontro da ponta dos nossos dedos. Sem
entender porquê retrocedi, cada passo para trás contado e medido sem pressa.
Foi então que ela andou até onde eu estava, mãos alongadas na direcção das
minhas, estendidas em meu amparo, voz breve a perguntar-me: como te chamas? E
eu da minha antiga mudez atirei fora o susto e respondi-lhe de rouquidão na
fala entumescida, a atropelar-se na garganta apertada: Lilias Fraser, e tu? Talvez
ela tenha hesitado uns segundos, demorando um tudo-nada a resposta: Leonor de
Almeida. E coisa alguma mais dissemos pois, sem outro motivo aparente que não
fosse o destino, nos completávamos. Sabendo eu a partir desse momento tudo o
resto, e por isso pude sem medo cumprir a vontade de reparar nos seus olhos de
um azul de cinza ardente, onde a encontrei intacta, incontaminada do mal,
embora marcada pelo fechamento de janelas, de portas e grades à sua volta, levada que será em
breve por acontecimentos tão devastadores e terríveis que a irão marcar para
sempre, afastá-la da vida tal como hoje a conhece e entende.
A bruxa tem os cristais guardados nos bolsos fundos da
saia, deles sentindo na carne a brasa gelada e a cintilação cega, que lhe
chameja o corpo. Inspira com precaução o ar, toma-lhe o gosto a salitre,
fareja-o, nele detectando o enxofre, o húmus contaminado pelo revolvimento que
em breve há-de vir das entranhas das terras, das águas sulfurosas e das pedras
que ali já fez secar as fontes. Depois de se ter debatido noites seguidas com
os próprios poderes e presságios, delirando com a febre alta que provoca
convulsões e lhe repuxa as feições, a bruxa nas suas alucinações viu ruir
Lisboa, escutou o urro imenso subido das entranhas da terra, os gritos
aterrados das pessoas em fuga pelas ruas em chamas, ouviu os estertores das que
ficaram estendidas, esmagadas debaixo do estuque e das lajes, dos mármores dos
palácios, dos altares e santos das igrejas, deu conta do pavor daqueles que
eram tragados pelas fendas enormes que se abriam no chão a engolir tudo, casas
e carros, e também aqueles que tombavam,
tropeçando nos escombros. Sentiu o estômago revoltado pelo intenso cheiro a
vulcão recolhido que andava no ar espesso de fumo acre, a fundo lodoso do rio,
a chuva envenenada, ao sal ácido das ondas de um mar revoltoso. Procurou em vão
defender-se das queimaduras das cinzas que tombavam do alto, como se fosse neve
parda, escaldante. E quando finalmente voltou a si, aterrada, reuniu os poucos
haveres numa trouxa, guardou dentro dela, também, as cartas de adivinhar
futuros, os cristais nos bolsos da saia imunda, embrulhou-se na manta de lã
cardada, abandonou a cabana de terra batida e saiu da cidade, entregando-se ao
destino que a guiou, ainda cambaleante, pelos caminhos do Campo Pequeno.
Com a boca crestada de sede, solta os emaranhados e enriçados
cabelos ruivos, liberta-os do lenço de riscado preto com o qual limpa o suor do
rosto afogueado pela inusitada quentura daquele princípio de tarde de 28 de
Outubro de 1755, e só nesse momento repara na carruagem que acaba de sair pelo
portão encimado pelo brasão dos marqueses de Távora. O carro puxado por dois
cavalos brancos de crinas entrançadas vai ainda a passo lento quando se cruza
com ela, parada à beira da estrada». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor,
Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN
978-972-204-733-3.
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