sexta-feira, 19 de abril de 2019

A Herança de Judas. James Rollins. «O chão estava coberto de pássaros, caídos nas praças de pedra como se tivessem sido atingidos no céu em pleno voo. Nada fora poupado. Homens, mulheres e crianças»

jdact

1293. Meia-noite. Ilha de Sumatra, Sueste Asiático
«(…) Nós jamais deveríamos ter entrado ali, Niccolò, ele censurou o irmão, mas as suas palavras acusatórias eram, na verdade, dirigidas a Marco. Fez-se silêncio entre os três, carregado de segredos comuns. O tio dele tinha razão. Marco imaginou o delta do rio quatro meses antes. O ribeirão negro desaguava no mar, ladeado por densa folhagem e trepadeiras. Eles procuravam apenas renovar os seus suprimentos de água doce enquanto dois navios eram consertados. Jamais deveriam ter-se arriscado a ir mais longe, porém Marco ouvira histórias de uma grande cidade além das montanhas baixas. E, como o conserto dos navios deveria demorar dez dias, ele se arriscara, com quarenta homens do Khan, a subir as montanhas e ver o que havia além. Do topo de uma delas, Marco avistara uma torre de pedra nas profundezas da floresta, estendendo-se alta, brilhante à luz da aurora. Como sempre fora curioso, ela o atraiu como um farol.
O silêncio enquanto eles caminhavam pela floresta na direcção da torre, no entanto, deveria tê-lo advertido. Não houvera nenhum som de tambores, como agora. Nenhum pio de aves, nenhum guincho de macacos. A cidade dos mortos simplesmente estivera à espera deles. Foi um terrível erro penetrar na floresta. E isso lhes custou mais do que apenas sangue. Os três olharam fixamente enquanto as galeras ardiam lentamente na linha d’água. Um dos mastros tombou como uma árvore cortada. Duas décadas atrás, pai, filho e tio haviam partido da Itália, sob a chancela do papa Gregório X, para se aventurar pelas terras dos mongóis, até aos palácios e os jardins do Khan em Shangdu, onde haviam permanecido por tempo demais, como perdizes engaioladas. Como favoritos da corte, os três Polo viram-se presos, não por correntes, mas pela imensa e sufocante amizade do Khan, incapazes de partir sem insultar o seu benfeitor. Assim, finalmente se julgaram afortunados por estarem regressando a Veneza, dispensados do serviço ao grande Kublai Khan para escoltarem a dama Kokejin até seu noivo persa. Oxalá a nossa frota nunca tivesse partido de Shangdu…
O sol vai nascer logo, disse o pai de Marco. Vamos embora. É hora de ir para casa. E se chegarmos àquelas praias abençoadas, o que diremos a Teobaldo?, perguntou Masseo, usando o nome original do homem, outrora amigo e defensor da família Polo, agora chamado papa Gregório X. Não sabemos se ele ainda está vivo, respondeu o pai. Nós nos ausentamos por muito tempo. Mas, e se ele ainda estiver vivo, Niccolò?, insistiu o tio. Nós lhe contaremos tudo o que sabemos sobre os mongóis, os seus costumes e suas forças, conforme fomos instruídos há tantos anos, de acordo com o édito dele. Mas sobre a praga aqui..., não resta nada sobre o que falar. Acabou.
Masseo suspirou, mas havia pouco alívio na sua exalação. Marco interpretou as palavras por trás de sua profunda carranca. A praga não havia ceifado a vida de todos aqueles que foram perdidos. O pai repetiu com mais firmeza, como se falar fizesse com que as coisas simplesmente fossem assim. Acabou. Marco ergueu o olhar para os dois homens mais velhos, seu pai e seu tio, emoldurados por cinza incandescente e fumaça contra o céu nocturno. Aquilo jamais terminaria, não enquanto eles se lembrassem. Marco olhou para os pés. Embora a marca tivesse sido removida da areia, ela ainda ardia intensamente por trás de seus olhos. Ele havia roubado um mapa pintado em cortiça laminada. Pintado com sangue. Templos e torres espalhados pela selva. Todos vazios. A não ser pelos mortos. O chão estava coberto de pássaros, caídos nas praças de pedra como se tivessem sido atingidos no céu em pleno voo. Nada fora poupado. Homens, mulheres e crianças. Bois e animais do campo. Até mesmo grandes serpentes pendiam frouxas dos galhos das árvores, com a carne cheia de furúnculos em baixo das escamas. Os únicos habitantes vivos eram as formigas. De todos os tamanhos e cores. Fervilhando em pedras e corpos, elas lentamente devoravam os mortos. Mas ele estava errado..., alguma coisa ainda aguardava o pôr-do-sol.
Marco repeliu aquelas lembranças. Ao descobrir o que Marco roubara de um dos templos, seu pai queimou o mapa e espalhou as cinzas no mar». In James Rollins, A Herança de Judas, 2007, Bertrand Editora, 2018, ISBN 978-972-252-977-8.

Cortesia de BertrandE/JDACT