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1293.
Meia-noite. Ilha de Sumatra, Sueste Asiático
«(…) Nós
jamais deveríamos ter entrado ali, Niccolò, ele censurou o irmão, mas as suas
palavras acusatórias eram, na verdade, dirigidas a Marco. Fez-se silêncio entre
os três, carregado de segredos comuns. O tio dele tinha razão. Marco imaginou o
delta do rio quatro meses antes. O ribeirão negro desaguava no mar, ladeado por
densa folhagem e trepadeiras. Eles procuravam apenas renovar os seus
suprimentos de água doce enquanto dois navios eram consertados. Jamais deveriam
ter-se arriscado a ir mais longe, porém Marco ouvira histórias de uma grande
cidade além das montanhas baixas. E, como o conserto dos navios deveria demorar
dez dias, ele se arriscara, com quarenta homens do Khan, a subir as montanhas e ver o que
havia além. Do topo de uma delas, Marco avistara uma torre de pedra nas
profundezas da floresta, estendendo-se alta, brilhante à luz da aurora. Como
sempre fora curioso, ela o atraiu como um farol.
O silêncio enquanto eles caminhavam pela floresta na direcção
da torre, no entanto, deveria tê-lo advertido. Não houvera nenhum som de
tambores, como agora. Nenhum pio de aves, nenhum guincho de macacos. A cidade
dos mortos simplesmente estivera à espera deles. Foi um terrível erro penetrar
na floresta. E isso lhes custou mais do que apenas sangue. Os três olharam
fixamente enquanto as galeras ardiam lentamente na linha d’água. Um dos mastros
tombou como uma árvore cortada. Duas décadas atrás, pai, filho e tio haviam
partido da Itália, sob a chancela do papa Gregório X, para se aventurar pelas
terras dos mongóis, até aos palácios e os jardins do Khan em Shangdu, onde
haviam permanecido por tempo demais, como perdizes engaioladas. Como favoritos
da corte, os três Polo viram-se presos, não por correntes, mas pela imensa e
sufocante amizade do Khan, incapazes de partir sem insultar o seu benfeitor.
Assim, finalmente se julgaram afortunados por estarem regressando a Veneza, dispensados
do serviço ao grande Kublai Khan para escoltarem a dama Kokejin até seu noivo
persa. Oxalá a nossa frota nunca tivesse partido de Shangdu…
O sol vai
nascer logo, disse o pai de Marco. Vamos embora. É hora de ir para casa. E se
chegarmos àquelas praias abençoadas, o que diremos a Teobaldo?, perguntou
Masseo, usando o nome original do homem, outrora amigo e defensor da família
Polo, agora chamado papa Gregório X. Não sabemos se ele ainda está vivo,
respondeu o pai. Nós nos ausentamos por muito tempo. Mas, e se ele ainda
estiver vivo, Niccolò?, insistiu o tio. Nós lhe contaremos tudo o que sabemos
sobre os mongóis, os seus costumes e suas forças, conforme fomos instruídos há
tantos anos, de acordo com o édito dele. Mas sobre a praga aqui..., não resta
nada sobre o que falar. Acabou.
Masseo suspirou, mas havia pouco alívio na sua exalação.
Marco interpretou as palavras por trás de sua profunda carranca. A praga não havia ceifado
a vida de todos aqueles que foram perdidos. O pai repetiu com
mais firmeza, como se falar fizesse com que as coisas simplesmente fossem
assim. Acabou. Marco ergueu o olhar para os dois homens mais velhos, seu pai e
seu tio, emoldurados por cinza incandescente e fumaça contra o céu nocturno.
Aquilo jamais terminaria, não enquanto
eles se lembrassem. Marco olhou para os pés. Embora a marca tivesse sido
removida da areia, ela ainda ardia intensamente por trás de seus olhos. Ele
havia roubado um mapa pintado em cortiça laminada. Pintado com sangue. Templos
e torres espalhados pela selva. Todos vazios. A não ser pelos mortos. O chão
estava coberto de pássaros, caídos nas praças de pedra como se tivessem sido
atingidos no céu em pleno voo. Nada fora poupado. Homens, mulheres e crianças.
Bois e animais do campo. Até mesmo grandes serpentes pendiam frouxas dos galhos
das árvores, com a carne cheia de furúnculos em baixo das escamas. Os únicos
habitantes vivos eram as formigas. De todos os tamanhos e cores. Fervilhando em
pedras e corpos, elas lentamente devoravam os mortos. Mas ele estava errado...,
alguma coisa ainda aguardava o pôr-do-sol.
Marco
repeliu aquelas lembranças. Ao
descobrir o que Marco roubara de um dos templos, seu pai queimou o mapa e
espalhou as cinzas no mar». In James Rollins,
A Herança de Judas, 2007, Bertrand Editora, 2018, ISBN 978-972-252-977-8.
Cortesia de BertrandE/JDACT