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1754-1758
«(…) Julgando reconhecer aquele vulto imóvel
que parece esperá-la, nimbado em contraluz pelo intenso sol do meio-dia, Leonor
Távora afasta, curiosa, a leve cortina de cetim bordado a ouro, para se
debruçar um tudo-nada. Durante esse breve segundo olham-se nos olhos uma da
outra, estremecendo ambas com a invasiva e maligna sombra neles adivinhada. Inclinando-se
para trás, a marquesa deixa tombar depressa a cortina e, lívida, recolhe-se na
penumbra velada, à espera de encontrar na força e na atenção do marido a
coragem que de súbito lhe falta. Mas Francisco Assis sente-se por demais
inquieto e distante para reparar no sobressalto dela, a tranquilizar-se a seu
lado à medida que o tempo passa. E quando chegam à casa deles na Rua da
Boa-Viagem vão ainda em silêncio, interditos e apreensivos com o despacho do
secretário Sebastião José Carvalho Melo, a preveni-los de que, sem mais demora,
El-Rei quer recebê-los. Paralisada sob o calor que a abrasa, a bruxa espera que
a carruagem passe, quando uma das pequenas janelas inesperadamente se abre e
uma mulher se curva para a olhar, deixando-a mergulhar por inadvertência ou
espanto até ao fundo violeta dos seus olhos, onde o sangue e a morte se
misturam, pois poucos anos a separam já do seu fim horrível. E quando o carro se perde ao longe,
encoberto pela poeira levantada, a bruxa foge espavorida, sentindo-se
perseguida pelos próprios poderes, que escapam ao seu controlo, a fazê-la
adivinhar segredos que deveriam manter-se ignorados até chegar a sua hora.
Vestidas para irem com os pais à missa cantada das dez
horas na igreja de Santa Madalena, as meninas conseguem escapar de casa para o
jardim onde tentam passar despercebidas enquanto se apressam nas áleas
geométricas, esgueirando-se por entre as faias, a dominarem o riso e a vontade
de correr, apesar de se sentirem contrafeitas nos vestidos de cambraia, folhos
de tule e renda a travarem-lhes o passo miúdo, toucas bordadas que naquele
primeiro de Novembro tanto as amenizam como as fazem suar, pois mais parece
estar-se no pino do verão do que no dia de Todos os Santos a caminho do
inverno. Mal a porta, impelida a custo de tão pesada, se fecha sem ruído, logo
se libertam das capas, dos livrinhos de missa, dos ramos de alecrim que ficam
caídos nos altos degraus da escadaria de mármore que desce até ao pátio ladeado
pela torre do relógio, a ala dos serviçais oposta ao lado onde ficam as seges, e logo adiante a casa
do frio e as cavalariças. Sem falarem uma com outra, dissimulando a alegria de
se verem soltas, elas hesitam, acabando por ir até à fonte dos anjos de mármore
onde mergulham na água fresca as mãos até aos pulsos estreitos, para depois se
salpicarem, uma correndo atrás da outra em torno das tílias e dos cedros, já
perto do muro demarcador do pomar, que por sua vez separa a mata que ladeia a
prisão do Limoeiro, onde àquela hora um condenado espia por entre as grades da
janela da cela, fascinado pela luz mosqueada, no centro da qual duas meninas
brincam à apanhada no jardim da quinta dos condes de Assumar, perseguindo-se e
correndo na lisura das pedras dos carreiros contornados pelo buxo aparado
rente, paralelo ao desenho geométrico dos canteiros de goivos e de
cravos-da-índia, dos lírios e das açucenas de um branco açucarado de nuvem.
Mas quando, entre assomos de riso, estão prestes a esconder-se na
sombra da latada de rosas púrpura, chega-lhes um revolvido e surdo clamor
subido das entranhas da terra, ao mesmo tempo que o chão lhes foge debaixo dos
pés, desequilibrando-as. Assustadas, franzem as pálpebras a verem a luz translúcida e
límpida da manhã tremeluzir, dançar frente aos seus olhos claros, paralisadas num demorado espasmo de medo, para de imediato
se agarrarem uma à outra apavoradas ante as convulsões da terra e o intenso
bramido que se levanta à mistura com o desabalado tocar de sinos, com os
gritos, imprecações e preces, gemidos dilacerados e súplicas, chamamentos em
pânico a subirem de tom à sua volta, acabando por se juntar num único fragor
desmedido, que trepa já pelas abaladas colinas de Lisboa, onde se sucedem as
ruínas». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor,
Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN
978-972-204-733-3.
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