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«(…)
Precipitei-me para ele, mas, quando
lhe acariciei a face, o menino virou a cara. Garanti-lhe que não queria que o
meu sobrinho fosse um anjo. Especialmente porque sou ateu, e não tenho intenções
de ir para o céu, brinquei. Que desgraça, um velho com pouca experiência com
crianças! Minha tentativa de amenizar a cena só conseguiu que ele chorasse
ainda mais. No meio do meu pedido de desculpas, Stefa apareceu no batente da
porta com as mãos nos quadris. Muito bonito, não tenha dúvida!, começou. Como
se o menino já não tivesse… Ele não devia ser obrigado a cantar, para mim ou
para quem quer que seja!, interrompi-a. Você sabe bem que ele não gosta. Na
esperança de aliviar a tensão entre nós com um pouco de humor, acrescentei: além
disso, acho que é melhor não ter de ouvi-lo cantar chansons d’amour num francês
com sotaque iídiche, pelo menos não até estarmos um pouco mais desesperados por
variedades. O tio sempre o trata mal!, gritou Stefa, vingativa. Ele tem um medo
mortal de você! Ela tinha razão, sem dúvida. Tudo isso acaba aqui, disse-lhe, e
surpreendi-me a acrescentar: não vou castiga-lo mais. As lágrimas encheram os
olhos da minha sobrinha. Desculpe ter sido tão desagradável, Katchkele,
disse-lhe, chamando-a pelo nome carinhoso que todos da família usavam com ela.
Incapaz de falar, ela apenas fez que
sim com a cabeça, numa aceitação muda das minhas desculpas. Peguei Adam no colo
e beijei-o na testa. Stefa saiu, fechando a porta brandamente atrás de si. Adam
e eu ficamos falando baixinho, pois isso dava à nossa amizade um tom mais íntimo.
Enxuguei as suas lágrimas e falei-lhe das viagens que havíamos de fazer juntos
quando saíssemos do gueto. Nova York era a cidade número um dos seus sonhos, e
ficou empolgadíssimo quando lhe disse que havíamos de apanhar o elevador até ao
topo do Empire State Building, e lhe expliquei como olharia lá para fora, para
o horizonte mais vasto do mundo. Nessa noite, deitado com o braço ao redor de
Adam, vi que meu pai tinha andado perseguindo o meu espírito para me lembrar de
que eu estava falhando com o seu bisneto. E comigo próprio, claro.
Eu viera para o gueto com a intenção
de reler toda a obra de Freud, e cheio de vontade de elaborar vários relatórios
sobre doentes meus, mas ao fim de dois meses já desistira disso tudo. Foi
estranhamente fácil. Como se se tratasse apenas de me enfiar num bonde em direcção
ao campo, e não ao centro da cidade. Num minuto, um homem não consegue pensar
em nada que não seja deixar para a posteridade obras seminais que sejam lidas
em Londres e Viena durante décadas, e no minuto seguinte está à espera do
sobrinho à porta de uma escola coberta de fuligem, examinando uma costura a soltar-se
num dos seus dois pares de calças e perguntando a si mesmo se ainda saberá usar
agulha e linha. Agora que Adam e eu éramos amigos outra vez, ele me contava
como tinha sido o seu dia enquanto voltávamos caminhando para casa. Começava
num tom monótono, cauteloso, para ver se eu estava interessado, mas cada
pergunta minha incentivava-o a acelerar o ritmo, de tal forma que em breve o
relato lhe saía numa velocidade estonteante. Por vezes lançava-se numa elipse
de pensamentos que eu não conseguia acompanhar. As palavras dele passavam por
mim zumbindo como abelhas». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009,
Editora Record, 2010, ISBN 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN
978-972-004-728-1.
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