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e wikipedia
O
Iniciado
«(…) O menino tinha uma afeição
insaciável pela mitologia de sua terra; uma afeição frustrada pelo facto de que
ninguém tinha tempo ou paciência para lhe contar o que ele queria saber.
Tinham-lhe ensinado, isso sim, a adorar os deuses, tinha aprendido seus
ensinamentos e rezava todas as noites. Mas era muito mais o que queria saber, o
que precisava saber. Às vezes as Irmãs de Aeoris assistiam aos festivais, as
religiosas encarregadas de manter vivas todas as tradições do culto, mas nunca
tinha falado com nenhuma delas e, em todo caso, não poderiam satisfazer a sua
sede de conhecimento. O que realmente ansiava era conhecer um Iniciado. A mera
palavra Iniciado provocava um calafrio de excitação no menino. Sabia que
aqueles homens e mulheres eram a verdadeira encarnação do poder no mundo:
misteriosos, inalcançáveis, ocultos. Viviam numa fortaleza inexpugnável na
Península da Estrela, muito para o norte, na beira do mundo, e qualquer que
desafiasse sua palavra atraía sobre si toda a ira dos deuses. Os Iniciados eram
filósofos e feiticeiros, mas os factos apareciam misturados com rumores e
falatórios: histórias, haviam-lhe dito, que não eram próprias para os ouvidos
de um menino. Mas, fosse qual fosse a verdade, os Iniciados infundiam respeito
e medo. Respeito, porque serviam aos Sete; medo, pela maneira que lhes serviam.
Dizia-se que os Iniciados comungavam com o próprio Aeoris e obtinham dele
poderes que nenhum mortal comum podia compreender, e menos exercer. Um conjunto
de especulações, meias verdades e fábulas..., mas que despertavam a imaginação
do menino que desejava saber mais e mais. Dando rédea solta à sua fantasia,
imaginava que fugia para muito longe, cruzando planícies, bosques e montanhas,
até que encontrava os Iniciados na sua fortaleza...
Tinha sido esta fantasia que
tinha metido a ideia na sua cabeça... Ele e Coran ficaram lançando pedras
distraidamente ao rio enquanto ia aproximando-se lentamente o clamor da
procissão. A vanguarda ainda demoraria para chegar; tinham tempo suficiente
para pôr em prática o pensamento que tinha inflamado subitamente a sua
imaginação. Quando sugeriu o jogo a Coran, seu primo se assustou. Fingir que
somos Iniciados?, disse, em voz baixa. Não podemos fazer isso! É..., é uma
heresia! Até falar dos Iniciados sem a devida reverência provocava má sorte, mas
o menino de cabelos negros não sentia estes temores. O conhecimento de que
estava rompendo um tabu excitava algo no seu íntimo, estimulava um sentimento
já meio formado e meio reconhecido. Não sabia nada dos poderes dos Iniciados,
mas tinha uma imaginação livre e desmedida. Coran era menos aventureiro, mas
maleável à vontade mais forte de seu primo, e afinal concordou, embora muito
perturbado. Seremos feiticeiros rivais, disse o menino de cabelos negros. E lutaremos,
empregando os nossos poderes um contra o outro!
Coran
passou a língua pelos lábios, vacilou e assentiu com a cabeça. Mas até o seu
espírito tímido acabou por entrar no jogo, ao ser dominado pela imaginação. E
então aconteceu. Os meninos estavam tão absortos no seu jogo que não perceberam
que a vanguarda da procissão dobrava uma esquina e se aproximava do mole. O Margrave
partia à frente da longa cadeia humana; atrás dele se elevava a estátua
imponente de Aeoris..., e o deus e seus portadores viram tudo. Coran, agora tão
submerso como seu primo no mundo criado pela sua fantasia, tinha lançado mil
maldições sobre a cabeça do seu rival. Este, para não ser superado, levantou
uma mão e lhe apontou com dramático gesto; ao fazê-lo, um pálido raio de sol
reflectiu com brilho impressionante na pedra incolor que o menino usava na mão
esquerda. Um bonito anel, muito impróprio de um menino. Por um instante, ao
reflectir o sol, a pedra pareceu ganhar vida, uma vida resplandecente e
terrível». In Louise Cooper, O Senhor do Tempo, O Iniciado, 1985, Digital Source,
Viciados em Livros, Ebook, 2008.
Cortesia
de DSource/Ebook/JDACT