segunda-feira, 15 de abril de 2019

Camões e a Infanta D. Maria. Ceuta. José Maria Rodrigues. «Vossa muita formosura com a sua tanto vai. Que me rio de meu mal. Quando cuido em quem me cura»

jdact

De volta de Ceuta
«(…)
Cantando por um valle docemente
Desciam dous pastores, quando Phebo
No reino Neptunino se escondia.

De idade cada qual era mancebo,
Mas velho no cuidado, e descontente
Do que lhe elle causava parecia.
O que cada um dizia,
Lamentando seu mal, seu duro fado,
Não sou eu tão ousado.
Que o pretenda cantar sem vossa ajuda;
Porque, se a minha ruda
Frauta deste favor vosso for dina,
Posso escusar a fonte Caballina.

Nota: Esta egloga, segundo creio, é dirigida a dona Francisca de Aragão, a tão formosa, como ajuizada dama da rainha dona Catharina. Della diz o J. Priebsch: Raras vezes uma dama da corte portuguesa foi alvo de tantas e tão enthusiasticas manifestações de admiração... Os poetas mais ilustres do seu tempo tributaram-lhe homenagem, cantando o esplendor da sua belleza e lamentando a altivez do seu desdém. Namorador incorrigível, Camões, ao voltar do Oriente, enfileirou também entre os apaixonados adoradores da que annos depois era nora de S. Francisco de Borja.
Este amor que vos tenho, limpo e puro.
De pensamento vil nunca tocado.
Em minha tenra idade começado.
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.
De haver nelle mudança estou seguro.
Sem temer nenhum caso ou duro fado.
Nem o supremo bem ou baixo estado,
Nem o tempo presente nem futuro.
A bonina e a flor asinha passa;
Tudo por terra o inverno e estio deita;
Só para meu amor é sempre maio.
Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
E que essa ingratidão tudo me enjeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.

Já agora também o soneto de despedida, quando a formosa senhora, em seguida ao seu casamento, acompanhou o marido para a corte do imperador Rodolpho II:
Ai imiga cruel! Que apartamento
É este que fazeis da pátria terra?
Ai! Quem do amado ninho vos desterra.
Gloria dos olhos, bem do pensamento?

Is tentar da fortuna o movimento
E dos ventos cruéis a dura guerra?
Ver brenhas d’ondas? feito o mar em serra,
Levantado de um vento e de outro vento?

Mas já que vos partis, sem vos partirdes,
Parta comvosco o ceu tanta ventura,
Que se avantaje áquella que esperardes.

E só desta verdade ide segura,
Que fazeis mais saudades com vos irdes.
Do que levais desejos por chegardes.

Servem de commentario a alguns versos deste soneto as seguintes palavras de Sánchez Moguel {Reparaciones historicaSy Madrid, 1894: En el ano siguiente (1576) debió verilicarse el matrimonio de Juan (de Borja, que era embaixador de Philippe II na corte de Lisboa desde 1569, e tinha enviuvado em 1575) y dona Francisca, pues de las pruebas para el hábito de Santiago del hijo mayor de ambos, Francisco Borja, resulta que este nació em 1577, según unos testigos en el mar, según otros en Génova… Caminaban entonces Juan y dona Francisca para Alemanía, adonde iba Juan de Embajador, á pesar de los ruegos de dona  Catalina á Felipe II para que le hubiessc dado otro puesto, á causa de lo mal que probaba á dona Francisca el passaje de la mar. A futura condessa de Ficalho, que ia ser mãe de mais de um vice-rei espanhol, partia-se, sem se partir, sem deixar uma parcela do coração ao seu desconsolado adorador.

Nada conseguiram também as senhoras que se prestaram a ser intermediarias, terceiras, no assumpto, e ás quais o poeta se dirige nestas redondilhas:
Pois a tantas perdições,
Senhoras, quereis dar vida.
Ditosa seja a ferida,
Que tem tais cirurgiões.

Pois ventura
Me subiu a tanta altura,
Que me sejais valedoras,
Ditosa seja a tristura,
Que se cura
Por vossos rogos. Senhoras.

Ser minha pena mortal.
Já que intendeis que é assi,
Não quero fallar por mi.
Que por mi falia meu mal.

Sois formosas,
Haveis de ser piedosas.
Por ser tudo de uma côr;
Que pois Amor vos fez rosas
Milagrosas,
Fazei milagres d'amor.

Pedi a quem vós sabeis
Que saiba de meu trabalho,
Não pelo que eu nisso valho,
Mas pelo que vós valeis.

Que o valer
De vosso alto merecer,
Com lh'o pedir de giolhos.
Fará que em meu padecer
Possa ver
O poder que tem seus olhos.

Vossa muita formosura
Com a sua tanto vai.
Que me rio de meu mal.
Quando cuido em quem me cura.

A meus ais
Peço-vos que lhe valhais,
Damas, de Amor tão validas,
Que nunca tal dór sintais,
Que queirais,
Onde não sejais queridas.

[…]

In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT