Ondas
«(…) Salvas
de quê? De quem? De nós mesmas? Nós, de nós mesmas?
Impossível imaginar como o mar rugia,
gelado e cor de chumbo na turbulência das ondas implacáveis, sublevadas,
debaixo dos nossos pés, enquanto descíamos muito lentamente até elas, eu e a
minha avó que gritava a pedir ajuda, ambas no mesmo nó de absurdo a caminho da
morte.
Afinal nem sequer senti medo.
Creio mesmo não ter sentido coisa alguma pelo lado do
negrume, com uma flor branca, mínima e amachucada apertada entre os dedos,
colhida por mim enquanto catava por entre as ervas daninhas, folhas, caules e
pétalas, líquenes, seixos e escaravelhos pequenos, também por entre os
interstícios das pedras do chão, no Largo do Infante, à procura de nada. Matilde pára
de abanar o banco!, ralhou a minha avó, e apesar de nem sequer me ter
aproximado do banco de jardim onde ela lia, fui aquietar-me a seu lado, bem comportada,
com a flor alva entre os dedos e a palma da mão suada, a tentar dominar o
sobressalto que já então me causava o saber-me injustiçada e também perplexa
por sentir o chão a mover-se debaixo dos meus pés, num repuxar diferente dos
tremores de terra a que a ilha do Faial já me habituara. E ali fiquei
emudecida, a cheirar no vento agreste que entretanto se levantara do lado do
oceano à nossa frente o mesmo odor de sempre, numa mistura
entrançada-entrelaçada de terra e mar,
de salsugem e gaivotas, de limos e verdete.
Mãos poisadas no colo de menina que
recusa bonecas, joelhos magros e arranhados, a tentar ver para além do que a
minha pouca altura me permitia, excepto quando o meu pai me sentava na
balaustrada, com as pernas balançando sobre a imensidão, e eu me demorava a
olhar em frente até me deter na anilada linha do horizonte, deixando navegar os
olhos pelo oceano embravecido, em direcção ao qual eu e a minha avó já tombávamos, quebrada
silenciosamente a placa de cimento onde o nosso banco estava assente, espécie
de círculo de betume pouco a pouco a desprender-se das suas vigas interiores,
dos seus cabos e fios de aço, arrastando-nos numa queda lenta, sem que ainda
déssemos por isso.
Lembro-me da queda e também de não
ter sentido nenhum desassossego, primeiro aturdida e logo sufocada de maravilhamento
diante do esplendor, enquanto ela durou no sentido das ondas, comigo
perfeitamente imóvel no centro da voragem. O rugido do mar a tornar-me surda
para os gritos da minha avó de pé a meu lado gesticulando, e para o cada vez
mais longínquo choro da minha irmã, que ficara do lado de fora do buraco lá no
alto, de onde pouco a pouco nos íamos distanciando.
A imaginar-me já afogada, vogando sem fim à superfície das
águas, como se do fundo da memória dos séculos me chegasse a imagem de Ofélia, ou eu fosse estilhaço de
pensamento alheio, personagem de um filme ou de um romance, da história encantada
de um livro ou ainda de um sonho. Quem sabe mesmo se impossível presságio do
suicídio nesse mesmo ano de Virginia Woolf em águas outras de lodo e rio,
enquanto, frente à vastidão alterosa, a minha vida estava na realidade
dependente de cabos, correntes, de amarras e traves e roldanas, fios de aço ou
de improváveis poderes de deuses caprichosos. Vagas imensas, na sua mistura luzente de
escuridade e esmeralda». In Maria Teresa Horta, Meninas,
Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.
Cortesia de
PdQuixote/JDACT