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De volta de Ceuta
«(…) Um dos artigos fundamentais do programma de vida nova, traçado em
Ceuta por Camões, era, segundo vimos, a sua reconciliação com aquella
Cuja lembrança e cujo claro gesto
lhe reappareciam agora na ulcerada alma, como que a encobrir o
incommensuravel vácuo que nella se fizera. Foram, porém, baldados todos os
esforços empregados por parte do poeta para realizar este intento. Não lhe valeram
satisfações, rogos nem queixumes, expressos com toda a eloquência em admiráveis
versos (églogas 3.ª, 4.ª e 5.ª).
Caminha o dia todo o
caminhante
E, emfim, lhe chega a
noite em que descansa;
Trabalha na tormenta o
navegante,
Traz-lhe a clara manhã feliz
bonança;
Recobra o fruto fértil e
abundante
Da terra o lavrador, se
nella cansa:
Mas eu de meu cuidado e
mal tão forte
Tormento espero só, só
crua morte.
De ouvir meu dano, as
rosas matutinas
Condoídas se cerram, se
emmurchecem;
Com meu suspiro ardente
as cores finas
Perdem o cravo, o lirio,
e não florecem.
Co’a roxa aurora as
pallidas boninas,
Em vez de se alegrarem,
se entristecem.
Deixam seu canto Progne
e Philomena (i),
Que mais lhes doe, que a
sua, a minha pena.
Responde o monte concavo
a meus ais,
E tu, como aspid,
cerras-lhe o ouvido;
Os indómitos, feros
animais,
Sem humano sentir,
mostram sentido;
Mas em ti minhas dores
desiguais
Nunca movem o peito
endurecido.
Por muito que te chame,
não respondes,
E, quanto mais te busco,
mais te escondes.
Naquella parte donde
costumavas
Apascentar meus olhos e
teu gado,
Alli donde mil vezes me
mostravas
Que era o pastor de ti mais desejado.
Nota: Escrevendo Philomena por Philomela (o rouxinol), o poeta tinha presentes,
além d’outros, estes versos da egloga do brando e doce Garcilasso Al visorey de
Nápoles:
Con la pesada voz retumba y suena
la blanda Philomena.
Vezes mil te busquei, por
ver se davas
Algum breve descanso a meu
cuidado,
Busco-te em vão no valle,
em vão no monte,
Qual o ferido cervo
busca a fonte.
Este lugar, de ti desamparado,
Em cujas sombras frias já
folgaste.
Agora triste, escuro, é já
tornado,
Que todo o bem comtigo nos
levaste.
Eras tu nosso sol mais
desejado;
Não temos luz, despois que
nos deixaste.
Torna, meu claro sol, torna
meu bem;
Qual é o Josué que te detém?
Despois que deste valle
te apartaste.
Não pára já algum gado, com
secura;
Secou-se o campo, desque
lhe negaste
Dos teus formosos olhos a
luz pura;
Secou-se a fonte donde já
te olhaste,
Quando menos, que agora,
áspera e dura.
Nega sem ti a terra, ouvindo
gritos,
Ás cabras pasto, e leite
aos cabritos.
Sem ti, doce cruel minha
inimiga,
A clara luz escura me parece;
Este ribeiro, quando a dor
me obriga.
Com meu chorar por ti contino
crece;
Não ha fera, a que a fome
não persiga;
Algum prado sem ti já não
florece.
Cegos estão meus olhos, nada
vem.
Porque não podem ver seu claro bem.
Torna, pois, já, pastora,
ao nosso prado.
Se restituir-lhe queres a
alegria;
Alegrarás o valle, o campo,
o gado,
E aquelle espelho teu da
fonte fria.
Torna, torna, meu sol tão
desejado;
Farás a noite escura claro
dia;
E alegra já esta vida magoada,
Em que só tua ausência é parca irada.
[…]
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.
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