Cortesia
de wikipedia e jdact
O
Mistério do Mundo
«Quero
fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó Dor, aonde me irei?
O mistério de tudo
Aproxima-se tanto do meu ser,
Chega aos olhos meus d’alma tão
[de] perto,
Que me dissolvo em trevas e
universo...
Em trevas me apavoro escuramente.
O perene mistério, que atravessa
Como um suspiro céus e
corações...
O mistério ruiu sobre a minha alma
E soterrou-a... Morro consciente!
Acorda, eis o mistério ao pé de
ti!
E assim pensando riu amargamente,
Dentro em mim riu como se
chorasse!
Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que
esfria,
São outra coisa que a noite e o
vento —
Sombras de vida e de pensamento.
Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.
Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos
são
A ilusão madre desta ilusão.
Mundo, confranges-me por existir.
Tenho-te horror porque te sinto
ser
E compreendo que te sinto ser
Até às fezes da compreensão.
Bebi a taça [...] do pensamento
Até ao fim; reconhecia pois
Vazia, e achei horror. Mas eu
bebi-a.
Raciocinei até achar verdade,
Achei-a e não a entendo. Já se
esvai
Neste desejo de compreensão,
Inalteravelmente,
Neste lidar com seres e
absolutos,
O que em mim, por sentir, me liga
à vida
E pelo pensamento me faz homem.
E neste orgulho certo
Fechado mais ainda e alheado
Me vou, do limitado e relativo
Mundo em que arrasto a cruz do
meu pensar.
Cidades, com seus comércios...
Tudo é permanentemente estranho,
mesmamente
Descomunal, no pensamento fundo;
Tudo é mistério, tudo é
transcendente
Na sua complexidade enorme:
Um raciocínio visionado e
exterior,
Uma ordeira misteriosidade
Silêncio interior cheio de som.
Já estão em mim exaustas,
Deixando-me transido de terror,
Todas as formas de pensar [...]
O enigma do universo. Já cheguei
A conceber, como requinte extremo
Da exausta inteligência, que era
Deus...
Já cheguei a aceitar como verdade
O que nos dão por ela, e a
admitir
Uma realidade não real
Mas não sonhada, [como o] Deus
Cristão.
Falhados pensamentos e sistemas
Que, por falharem, só mais negro
fazem
O poder horroroso que os
transcende
A todos, [sim,] a todos.
Oh
horror! Oh mistério! Oh existência!
[…]
In Fernando Pessoa, Primeiro Fausto
Cortesia
de Wikipedia/CFH/UFSC/Magno/JDACT