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e wikipedia
O interdito ligado à morte
Os dados pré-históricos do interdito ligado à morte
«(…) A prática da
sepultura é o testemunho de um interdito
semelhante ao nosso que concerne aos mortos, e à morte. Pelo menos, de uma
forma vaga, a origem desse interdito é logicamente anterior a essa prática.
Podemos mesmo admitir, num certo sentido e de forma superficial, que ele nasceu
ao mesmo tempo que o trabalho, de maneira que nenhuma prova pôde subsistir e
seu surgimento escapou mesmo aos que o viveram. Trata-se essencialmente de uma
diferença feita entre o cadáver do homem e os outros objectos, como as pedras.
Hoje essa diferença caracteriza ainda um ser humano em relação ao animal: o que
chamamos de morte é em primeiro lugar a consciência que temos dela. Percebemos
a passagem da vida à morte, isto é, ao objecto angustiante que é para o homem o
cadáver de um outro homem. Para cada um daqueles que ele fascina, o cadáver é
uma imagem de seu destino. Ele é testemunho de uma violência que não só destrói
um homem, mas que destruirá todos os homens. O interdito que se apodera dos outros diante do cadáver
é uma forma de rejeitara violência,
de se separar da violência.
A representação da violência, que devemos atribuir particularmente aos
homens primitivos, é entendida necessariamente em oposição ao movimento do
trabalho que é regulado por uma operação racional. É, há muito tempo,
reconhecido o erro de Lévy-Bruhl, que recusava ao primitivo um modo de pensar
racional, atribuindo-lhe apenas os deslizamentos e as representações indiferenciadas
da participação: o trabalho não é evidentemente menos antigo que o homem, e se
bem que o animal não seja sempre estranho ao trabalho, o trabalho humano, distinto
do animal, nunca é estranho à razão. O homem acha que existe uma identidade fundamental
entre ele e o objecto trabalhado e uma diferença, resultante do trabalho, entre
a sua matéria e o instrumento fabricado. Da mesma forma, ele tem a consciência
da utilidade do instrumento, da série de causas e efeitos que o envolve. As
leis que presidem às operações conscientes de onde provêm ou às quais serviram
os instrumentos são desde o início as leis da razão. Estas leis dirigem as
mudanças que o trabalho concebe e realiza. Sem dúvida, um primitivo não poderia
tê-las articulado numa linguagem que lhe daria a consciência dos objectos
designados, nem a da designação, nem a da própria linguagem.
A maior
parte do tempo o operário moderno não estaria também apto a formulá-las: entretanto,
ele as observa fielmente. O primitivo pôde, em certos casos, pensar como Lévy-Bruhl
o representou, de uma maneira insensata, pensar que uma coisa é, mas ao mesmo
tempo não é, ou que ela pode num mesmo tempo ser o que ela é e outra coisa. A razão
não dominava todo o seu pensamento, mas o dominava na operação do trabalho, de modo
que um primitivo pôde conceber, sem formular, um mundo do trabalho ou da razão,
a que o mundo da violência se opunha. Certamente a morte difere, como se fosse
uma desordem, da organização do trabalho: o primitivo podia sentir que a
ordenação do trabalho lhe pertencia, enquanto a desordem da morte o
ultrapassava, fazendo de seus esforços um contra-senso. O movimento do
trabalho, a operação da razão, lhe servia, enquanto a desordem, o movimento da
violência, arruinava o ser mesmo que está no fim das obras úteis. O homem,
identificando-se com a ordenação que operava o trabalho, separou-se nessas
condições da violência, que agia em sentido contrário». In Georges
Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores,
1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972-608-018-3.
Cortesia
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