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O
Medalhão de Ouro
«(…) Todavia a divina Providência
havia destinado que outro facto bem mais extraordinário viesse relegar esse
para um plano não de esquecimento mas de momentâneo apagamento. Foi o caso que,
ao meter inadvertidamente a mão num bolso, dei conta daquela tira de papel que
havia caído do missal quando eu ajudara à missa. Estávamos já na capela. Um
corredor ao meio, a todo o comprimento, separava as duas séries de bancadas.
Dupla fila de sobrepeliz brancas segue em silêncio e abre a um lado e outro
para nos acomodarmos nas fileiras daqueles longos assentos cujos espaldares
serviam, para os de trás, de apoio cimeiro do genuflexório. Calhara-me
encabeçar a entrada numa das fileiras, de modo que o meu lugar era junto da
parede. Tinha apenas um companheiro à minha esquerda, o que sobremaneira me
aprazia, pois gostava, sobretudo naquele momento, de estar isolado. Atrás de
nós ouviam-se os passos dos que vinham chegando e se arrumavam. Enquanto
esperávamos que as bancadas, à nossa rectaguarda, se fossem enchendo, num gesto
inconsciente olhei a tira de papel que conservara na mão. Como a tinha
amarrotado um pouco ela entreabrira-se e eu reparei que afinal não era uma tira
mas uma folha dobrada a meio, no sentido longitudinal. Abri-a. Estava toda escrita
de alto-a-baixo com uma letra miudinha, muito certa e alinhada como a régua.
Logo às primeiras palavras pôs-se-me o coração, como um louco, a pulsar muito
depressa e tudo o que estava à minha volta desapareceu. Fechei a folha e
guardei-a no bolso, para sossegar e com medo de ser visto: ela referia-se a São
Pantaleão! Precisava de estar só, mas estar só é coisa difícil numa comunidade.
Praticamente, tirante a hora do sono e a do banho, só há uma ocasião em que se
pode estar só. Aproveitei-a, logo que pude, e então, no recato pouco cómodo da
sentina, li o que estava escrito naquela folha de papel.
Em 1453, no dia vinte e
sete de Julho, fundeara em Miragaia, no rio Douro, uma embarcação tripulada por
cristãos arménios que vinham fugidos das chacinas que Maomé II havia praticado
nas longínquas terras do Império Romano do Oriente e sobretudo em
Constantinopla. Quando as hordas daquele rei infiel saquearam a cidade, a custo
aqueles cristãos conseguiram escapar e salvar da devastação furiosa dos ímpios
as relíquias de São Pantaleão. Era este santo, um físico ilustre de Nicomedia,
na Bitinía, filho do gentio Eustórquio e de uma moça cristã chamada Eubula.
Havia a mãe sabido transmitir ao filho a verdade de Cristo e, no tempo do
imperador Diocleciano, foi ele preso por causa da sua fé. Recebeu a coroa do
martírio cerca do ano 303 da nossa era, sendo venerado, pelos seus extraordinários
milagres, na Igreja Ortodoxa grega. As relíquias do taumaturgo, vindas agora
para Portugal, foram depositadas na Igreja de S. Pedro de Miragaia, junto da
qual aos arménios, que pediam asilo, foi concedido tomarem arruamento, constituindo-se
eles foreiros do cabido da sé do Porto. Ainda hoje essa rua, se chama Rua dos
Arménios. Esse mesmo ano abateu-se sobre o velho burgo portucalense uma
terrível peste que ameaçou desde logo dizimar muitas vidas. Apegaram-se os
fiéis a São Pantaleão e logo aquela pestilência se extinguiu.
Semelhante maravilha trouxe
redobrado prestígio ao santo de Nicomedia, de modo que os burgueses da cidade,
agradecidos, tendo à cabeça o seu prelado, o proclamaram padroeiro do Porto e,
poucos anos volvidos, em doze de Dezembro de 1496, o bispo Diogo Sousa fez
trasladar, com solene procissão em que se incorporou toda a gente do sítio e
das redondezas, as santas relíquias para a sé catedral. Aconteceu, ademais, que
em 1482 - subira ao trono por morte de Afonso V seu filho João, assolou o
reino, vinda de Veneza, a peste grande que só na cidade de Lisboa fez sessenta
mil vítimas. Ouvindo el-rei falar dos milagres que Deus fazia por intermédio do
seu servo, o padroeiro da cidade do Porto, ateve-se àquele santo milagreiro e
fez promessa de lhe mandar lavrar um relicário de prata que condignamente
acolhesse as sagradas relíquias. O cumprimento desta promessa todavia foi-se
atrasando, protelando e caindo quase no esquecimento, dados os agitados e
perturbantes factos que sucessivamente foram abalando o reinado daquele
monarca: a morte, em Setúbal, do duque de Viseu, às mãos do próprio rei; a execução
do duque de Bragança, Fernando, na praça pública de Évora; o desastre trágico
do príncipe Afonso, ao qual o rei pouco sobreviveu falando-se à puridade que a
sua morte intempestiva não fora casual...» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT